Morreste-me e a minha vida ficou amputada como uma árvore a que cortam as raízes. O meu tronco mantém-se de pé (sim, as árvores morrem sempre de pé, lembro-me da lição!) e a minha vida tem flores e até deu frutos, avó. Mas nunca serei eu inteira sem vós, sem ti.
Morreste-me e fecho os olhos, todos os dias, para manter presente cada sinal de ti, a pele enrugada, o cheiro a terra, a erva, a Minho. As orelhas furadas com as argolas de ouro e as mãos- ingratas- a falharem-te, rijas como que solidificadas à força do pulso forte com que regias a vida. Os olhos verdes escuros, o nariz arrebitado, as sobrancelhas que me deixaste de herança. Fecho os olhos e oiço, todos os dias, a tua voz rouca, a pronúncia do Norte, o tom impaciente, as expressões tão tuas.
Morreste-me e não passa um dia sem que me lembre de ti à força de não te querer esquecer, ainda que arda a tua morte recente, o ontem que ainda aqui estavas, a tua pele, avó, o pão com manteiga aquecido nos bicos do fogão, os teus cabelos negros, o leite morno com café e cacau, coisas tuas.
Morreste-me mas perduras para além de todas as memórias que faço questão de alimentar, tenho medo de um dia a memória me falhar, avó, e preciso saber-te de cor e salteado- como ontem- para sempre. Perduras numa presença invisível, de sentir, sem explicação. Mas morreste-me e não podias ter morrido assim.
Hoje é o teu dia, avó, e falo contigo no presente porque morreste-me mas nunca morrerás em mim. Serás presente enquanto eu existir porque o pretérito não foi perfeito, porque te levou num passado recente, para longe de mim.
Quando passarás a provocar-me um sorriso saudoso nos lábios em vez de lágrimas de perda e de solidão, avó? A vida, sem ti, não me sacia. Fazes-me tanta falta.
Hoje é o teu dia, avó. Escuta-me, baixinho, a cantar-te os parabéns. O avô ri e tu zangas-te com ele. Rimo-nos os três. Não me voltas, avó mas eu estou aí, agora estou aí, a cantar-te os parabéns. No regresso, trago um restinho etéreo de ti para alimentar a Ana pequenina, que te vai conhecer como se vivesse contigo. No regresso, trago essa raiz que a tua morte me levou para a plantar nos pés desta bebé, por estaca ou por semente, não sei, mas vai pegar, avó.
Tu sempre me dizias que se deve falar com as flores para elas crescerem mais bonitas.
Parabéns para ti, minha, nossa avó!