[Ser psicóloga inexperiente tem destas coisas: as psicólogas caloiras- como eu já fui- não conseguem evitar envolver-se emocionalmente nas vidas dos seus pacientes. Aconteceu com as minhas colegas, aconteceu com os meus professores da faculdade e (voilá!) aconteceu comigo.
Tinha enterrado a Ana Lúcia nas catacumbas das minhas memórias de psicólogazinha sensível, vulnerável e emocional; seis anos cimentados de psicologia organizacional e juras pela minha saúdinha que nunca mais voltaria a ser a brilhante psicóloga social que um dia almejei vir a tornar-me.
Trabalhar com adolescentes institucionalizados quando se tem 20 e poucos anos, se acabou de sair da universidade e a diferença de idades é tão ridícula que te confundem com colegas no primeiro dia de aulas, tem destas coisas: a Ana Lúcia era o meu calcanhar de Aquiles.
Todos os dias de manhã lá estava ela: à varanda do quarto do lar à espera de me ver passar, rampa abaixo a caminho do meu gabinete. Assobiava infalivelmente e saudava-me com um "Bom Dia, alegria!" ruidoso e alegre, como se o dia dela ficasse com mais sol só por me ver chegar. Tinha 16 anos, uns curiosos olhos azuis e uma espontaneidade a que eu apelidava de "incontinência verbal".
Fui psicóloga da Ana Lúcia durante dois anos: ofereci-lhe caixas de pílulas às escondidas, dei-lhe a roupa da Bershka que as outras meninas da idade dela tinham e que a instituição não tinha verbas para comprar, comemorei o 18º aniversário com ela à sucapa nos Jardins de Belém empaturrando-a de bitoques e gelados e tudo o que não era costume mas a que ela tinha direito, acompanhei a aventura do primeiro desgosto de amor, coloquei-a e estagiar numa fábrica de confecção e (envergonhada!) obriguei-a a devolver ao ex-futuro patrão os sutiens que ela tinha roubado e vestido em camadas.
Um dia, quis seguir com a minha vida para a frente: arranjar outro trabalho, progredir na minha carreira, deixar a instituição e abraçar um novo desafio profissional. Mas ser psicóloga inexperiente tinha-se, de repente, tornado em mais que uma profissão.
No meu último dia de trabalho subi a rampa para sair, pela última vez, do portão. Olhei para trás e fitei a janela do lar que no dia seguinte teria a Ana Lúcia à minha espera. Não me despedi de ninguém. Não disse adeus à Ana Lúcia. Não chorei sequer: o nó na garganta sufocava-me.
Ontem, ao descer pela Rua Augusta, uma mão cheia de anos passados, dou de caras com a Ana Lúcia: magra, desnorteada, ansiosa. Os mesmos olhos azuis. O mesmo ar de menina catita que não cresceu.
O trânsito não entupiu. O tempo não parou. As lojas não fecharam. O fadista de rua não parou de cantar. O homem estátua continuou impávido e sereno.
Mas ali estava ela, o pardalito comum da cidade, que ninguém vê mas que um dia viveu a cantar na minha gaiola. Que alegrou as minhas manhãs. Que fez com que a psicologia fizesse sentido e deixasse de fazer sentido, outra vez. Que fez de mim a psicóloga inexperiente e emocional que eu não queria ser.
A Ana Lúcia que vive numa pensão com a mãe que pede esmola ali mesmo ao pé do Arco da Rua Augusta, confinada à sua cadeira de rodas.
A Ana Lúcia que cheirava mal porque ontem lhe acabou o shampoo 2 em 1.
A Ana Lúcia que namora com o empregado paquistanês de uma loja de kebabs do Martim Moniz.
A Ana Lúcia que não sabe como procurar emprego.
A Ana Lúcia que não lê um livro há mais de dois anos.
A Ana Lúcia que esteve desaparecida três dias porque fugiu do lar, logo após a minha saída.
A Ana Lúcia cuja irmã mais nova está grávida pela segunda vez a viver num lar de acolhimento porque o namorado a espanca.
A Ana Lúcia cujo cunhado entornou ácido por cima da mãe.
A Ana Lúcia que não tem uma almofada no quarto onde dorme com a mãe e o padrasto.
A Ana Lúcia que se limpa com a toalha de banho comum aos três.
E jantámos à grande: eu e a Ana Lúcia. Gostamos ambos de bitoque. Chafurdámos pão na gema do ovo estrelado, não obstante a minha dieta. Dei-lhe uma almofada e uma fronha no IKEA. E tolhas de banho coloridas, e gel e poufs-esponjas. E um shampoo. E tive vontade de a trazer para casa mas sei que os pardalitos da cidade precisam de voar pelos céus, ainda que muitas vezes desorientados.
Deixei-lhe o meu número de telemóvel. Como se precisasse de construir uma casa de pássaros de madeira no alto de uma árvore e prender um GPS na patinha do passarito. Porque ontem, quem recebeu mais fui eu. Ontem esteve um dia de sol maior: um pardalito da cidade cantou só para mim. ]