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quinta-feira, 14 de abril de 2022

Dias normais




A maravilha do regresso à normalidade dos dias cá dentro. Lá fora continua tudo uma merda: guerra, violação dos direitos humanos, incerteza e a angustia de estarmos à mercê de um ditador russo psicótico.

Mas cá dentro- por mais egocêntrico que pareça- é sempre pior. Porque antes de morarmos no Mundo moramos em nós.

A maravilha do regresso à normalidade. A minha mãe bem, de regresso ao trabalho. A minha mãe sem fumar há mais de um mês e eu sentir o cheiro da minha mãe pela primeira vez, sem resquícios de fumo e de tabaco. A Ana de férias de Páscoa, criativa e energética, às vezes- como agora- estiraçada no sofá a ver uma série na Netflix. A gata a apanhar o sol tímido desta manhã de Abril no peitoral da janela. O Rui em tele-trabalho noutra divisão, eu aqui na sala. Silêncio bom, por escolha e não por angústia ou medo das palavras, na casa. Cheira a café quente na cozinha, acabado de fazer com café solúvel e água fervida e eu acho que vou vender a máquina de pastilhas e comprar uma cafeteira das antigas.

Não faço ainda a cama. Deixo arejar os lençóis sob a incrível colcha de lã de tear que gamei à minha sogra da última vez que estive nos Açores. Já consegui dormir sem insónias, já consigo respirar sem nós na garganta nem a ansiedade a esmiufrar-me o peito.

Agradecemos muitas vezes os dias especiais e esquecemo-nos de valorizar os dias normais, sem sobressaltos e previsíveis, seguros e felizes por definição.

Lá fora está uma merda, eu sei, mas antes de moramos no Mundo moramos em nós. E em nós regressa a normalidade e o aconchego dos dias banais.

Que bom que é.

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Panquecas com xarope de misérias

 

Ofereceram-me uma máquina própria, fiz a massa direitinha, sem me enganar numa só medida de farinha, açúcar e leite. À primeira porção de massa percebo que me esqueci de untar a superfície da máquina, a puta da massa enrola, cola-se tudo às bordas e desisto com a grande javardice da massa a parecer argamassa colada no raio de um metro de toda a bancada.
Nas panquecas, como na vida

sexta-feira, 8 de abril de 2022

Ir

 Há dias extraordinariamente ambivalentes.

De repente, há uma janela que se abre, se escancara para ti e tu ficas ali, sem saber se trepas, se a fechas e ficas ali, indecisa entre o calor de uma casa que conheces- onde te sentes em família, onde podes andar de pés descalços e sabes que há sempre comida quente sobre a mesa, abraços à tua espera - e o fresco das aventuras que te espera no outro lado do vidro, nas ruas desconhecidas cheias de desafios por desbravar. Sentas-te no parapeito da janela e olhas ora para dentro, ora para fora, o conforto de dentro, a casa e a família e todas as possibilidades em aberto de fora, tudo o que pode acontecer, a novidade, a mudança e tu até não és nada avessa à mudança. Fechas as portinholas e voltas para o calor? Ou pões uma mão de fora para testar a temperatura e, num salto de fé (é sempre de fé que se trata) saltas para o desconhecido (e se for um abismo? E se correr mal? E se ficares perdida ao frio? E se nunca encontrares o caminho para voltar? E se nunca mais houver volta?)?

Há dias extraordinariamente ambivalentes em que ficas de coração partido e, ao mesmo tempo, de coração acelerado porque dói sempre quando deixas quem gostas na mesma proporção do entusiasmo e da expectativa de quem está por conheceres, de quem um dia irás gostar.

Hoje foi um dia extraordinariamente ambivalente e eu vou saltar da janela porque a sorte protege os audazes e a mudança dá um medo do caraças mas nada nos lembra com mais poder de que estamos vivos.

Pode correr mal. Mas também pode correr bem.

Que a sorte, a fé e o afecto de quem fica dentro dos vidros da janela me proteja. Casa será sempre casa mas eu sou feita do verbo ir. Abram-se as janelas de par em par: estou a ir!

Vamos lá.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

"Uma pessoa compreende o Mundo, pouco a pouco, e depois morre"




“Uma pessoa compreende o Mundo, pouco a pouco, e depois morre” - in “as velas ardem até ao fim”. 
 Nos últimos meses aprendi tanto, cresci tanto, aprendi tanto sobre mim e sobre o Mundo, abriram-se tantas luzes, desfizeram-se tantos nós. Tem sido um processo tranquilo e sereno ao contrário de todas as outras vezes em que cresci à força, puxada por episódios marcantes específicos: a separação dos meus pais, a morte dos meus avós, o nascimento de Ana, a morte do meu tio. 

 Desta vez é diferente, é de dentro que o crescimento vem, não é nada externo, consigo projectar-me,pensar mais fundo como quem inspira, sentir melhor. 

 Faço quarenta anos dentro de dois meses, o equador da vida e já não me sinto a envelhecer, como se fosse uma coisa pesada e fatídica, sinto-me só finalmente a crescer sem ser à bruta, à força, com estaladas da vida e abanões do destino. Crescer como cresce uma planta já depois de ter caule e folhas e flores, crescer para os lados, tornar-me mais robusta e forte, melhor. Uma pessoa compreende o Mundo, pouco a pouco. Pouco a pouco, é mesmo assim. Para compreender tudo bem. Tudo certo e melhor.

 E depois poder, enfim, morrer como quem (se) apaga (n)uma estrela.
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