quarta-feira, 24 de julho de 2024

Limetree

 A maior aprendizagem que se pode fazer na vida é saber lidar com o fim da vida. Primeiro o dos outros, sempre como projeção do nosso.

Há dois meses morreu um homem íntegro, um bom marido, um pai presente, uma pessoa entusiasmada e cheia de vontade de viver, com planos e projectos, vida por cumprir.
Colaborámos juntos num projecto dele, para o qual eu estava despreparada e ele achou que não, e fiquei sempre com uma dívida de gratidao pela sua crença irrealista em mim. Esta era uma das características distintivas desse homem, que ja cá não está e eu nunca lho vou poder dizer, uma coragem inconsequente em arriscar. Sem medo de perder nem de bater de frente com o insucesso e o fracasso.

Fizemos coisas giras juntos, num tempo em que descobriamos o poder e o perigo das redes sociais e em que, por escrever num blog, havia muita gente a acreditar na minha despreparação.
Tenho pensado muito nele e na finitude da matéria que somos, das pessoas que amamamos e que permanecem para além de nós, das pessoas que continuamos a amar e que desaparecem assim, como ele, sem levar a barriga cheia de vida sem se ter fechado o prato da existência e cruzado os talheres em sinal de satisfação.

Talvez eu propria morra sem conseguir aceitar o ciclo ilógico da nossa existência. E talvez a morte daqueles com quem privámos refeições à mesa, conversas enquanto se lavava loiça à mão, ideias para projectos que nunca se realizaram seja apenas um evento sem sentido nenhum, do qual não se retira qualquer lição ou aprendizagem, apenas a constatação triste da nossa própria insignificância no universo e que tudo o que nos sobra é acreditar.

Crer.

sábado, 15 de junho de 2024

New race

 Ao princípio não foi simples. Eu tive medo mas achei que o Mundo e os astros estariam em sintonia com os valores com que te temos educado e que tudo se iria ajustar. Eu tive medo, já disse? Esta também é a minha primeira volta no carrossel da vida e muitas vezes nao consigo acompanhar o balanço e só fico tonta e nauseada. Tambem na tua educação. Principalmente na tua educação.

Acabou por nunca ser simples. O Mundo e os astros desalinharam-se muitas vezes. E os valores com que te temos educado mostraram que eram os melhores para ti, apenas e apenas se vivessemos num Mundo onde estes valores de compromisso, diversidade, humanidade, integridade e o respeito inabalável por quem se é, sem desvios nem vontade de existir em função das expectativas dos outros, de se ser fiel ao que se acredita sem querer ser o que o outro espera, esta maturidade no estabelecimento de limites, fossem universais. Não são.
Pedimos muitas vezes que te ajustasses. Que flexibilizasses. Que nao levasses tão a sério os teus dogmas e as tuas crencas. Até que percebemos que nunca podemos pedir que deixes de ser tu em função do colectivo, da norma. Na verdade, nunca te educámos para a norma.
Nunca te desviaste do teu caminho. Essa rigidez que tantas vezes nos preocupa dá-nos o alento de acreditarmos que, de tudo o que de bom te ajudámos a ganhar, a tua integridade foi a nossa maior vitória. És inabalável. O orgulho que sentimos de ti.
Entraste com dez anos acabados de fazer. Corrias aos saltinhos para o portao, com a mochila maior que tu, cheia de nervos mas sempre com coragem e valentia.
No fim não foi fácil. Nunca foi fácil.
Hoje foi o ultimo dia e, no proximo ano, nao sabemos o que nos espera. Mas temos esperança que encontres a tua tribo. "Hoje estou felistre, mãe"-disseste de manhã. "Felistre" é o meu novo neologismo preferido. Eu diria ambivalente mas, na verdade, estou feliztre contigo: feliz pelo novo ciclo que nos espera, triste porque nunca foi fácil. Mas a vida é muito este equilibro entre a felicidade e a tristeza.
Hoje foi o ultimo dia de uma das tentativas do primeiro dia do resto da tua. Muitas te esperam vida fora. Nao e game over: é new race. May the odds be in your favor.

domingo, 2 de junho de 2024

O pior de ter filhos

 O pior de ver os filhos crescer é ter que os deixar experimentar a dor. A tristeza. O desânimo e a frustração. A raiva e a desilusão.

E não poder estar lá para dar beijinho no dói -dói porque às vezes- quase sempre- o dói -dói é na alma e não está aqui ao alcance dos nossos lábios.

O pior de ver os filhos crescer é às vezes não ser tão claro explicares o funcionamento do Mundo e da vida, porque muitas vezes não há racional nem lógica no que acontece e coisas más acontecem a pessoas boas e coisas boas acontecem a pessoas que nem sempre prestam.
O pior de ver os filhos crescer é já não conseguires delimitar o bem do mal com tanta clareza, de muitas vezes tudo o que ensinaste que é certo não os levar a lado nenhum porque há o contexto e os outros, e se a maioria escolhe o que tu consideras errado pois que é o errado que estabelece a norma. É teres que os ver aprender, pelos próprios meios, que as injustiças vão sempre acontecer e que muitas coisas que não estão certas vão ser normalizadas mas que é seu dever moral nunca as considerar "normais".
O pior de ver os filhos crescer é quereres que eles sejam aceites sem desvirtuarem os seus valores, sem abrirem mão da sua ética, sem prescindirem da sua liberdade individual mas que, muitas vezes, o caminho pode ser solitário para quem não cede à maioria, para quem pensa pela sua cabeça, para quem não deixa que o colectivo esmague o individual.
O pior de ver os filhos crescer é perceberes que só educaste aquela pessoa mas que não educaste o Mundo e que é no Mundo que aquela pessoa se vai mover e que terá que sobreviver.
O pior de veres os filhos crescer é perceberes que o teu colo já não chega para ser o coito na corrida da vida e que não podes colocar airbags em redor da existência daquela pessoa pequena e que crescer é duro e implica saltar de desconforto em desconforto, que descobrir-se quem se é já é duro, mas descobrir-se quem se é no Mundo é uma tarefa hercúlea.
O pior de ver os filhos crescer é perceber que eles serão cada vez mais do Mundo tentando travar que deixem de ser cada vez menos teus.

sábado, 23 de dezembro de 2023

domingo, 3 de setembro de 2023

Dezassete




Viver comigo não é pera doce. Gosto de palco e plateia, aplausos, luzes e focos, cenários bonitos e microfones amplificados. E estou sempre no improviso na boca de cena, sem ensaios nem guiões, na vida por impulso, na corda bamba sem redes mas também sem medo.
Ocupo muito espaço, não peço licença e sou barulhenta e nunca permito ser menos que a actriz principal da minha vida.
Que, há dezassete anos, passou a ser a nossa com palco partilhado, cenografia partilhada, luzes partilhadas e aplausos partilhados.
Partilhar a boca de cena comigo deve ser terrível, quase dramático. Não sei como ficaste.
Por outro lado és tu que me serves de ponto a maioria das vezes para que não faça má figura por não decorar os textos, és tu que me ajeitas o cabelo para que a luz incida sobre o meu melhor ângulo, és tu que me relembras dos exercícios de respiração antes de entrar em cena e quando me dá o pânico, és tu que me ensinas a projectar a voz e a mover-me em palco de forma regrada, para que todos me vejam.
E és especialmente tu -que preferes os bastidores da vida e o camarim da intimidade -que me permite ser eu, nunca abdicar de ser eu, meia diva, meia palhaça, equilibrista sofrível na corda bamba, mesmo que há dezessete anos tenhamos decidido firmemente ser um nós.
Comemoramos dezassete anos de casados e eu sei hoje, como naquele dia três, que eu posso ser a tua diva preferida mas que só o sou porque o melhor aplauso é o teu. E sem o teu, o resto é vazio e silêncio, cortina triste e fechada.
Obrigada por me amares pelo que sou e como sou: sem ti eu, a esta altura, já não seria eu.
És o melhor contra-cena do Mundo: todas as luzes e aplausos são e serão sempre no plural. Obrigada por isto e todo o tanto.

Amo-te. 

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Aos 9 de Agosto de 2023, à Ana por ocasião do seu 11º aniversário

 No outro dia dizias-me, naquelas lições que me dás muitas vezes e em que eu, deslumbrada, te vislumbro mestre, qualquer coisa como "eu estou a descobrir quem sou".

E eu fiquei muito tempo, Ana, com as tuas palavras sementes a ganharem raízes na tua cabeça e depois flores quando percebi que tinhas, numa frase, resumido a essência da adolescência.
Eu gostava de te dizer que já descobri quem sou para te guiar, levando-te pelas mãos do lado de dentro do passeio, sempre o mais seguro, para esse lugar que procuras descobrir mas a realidade é que não sirvo para GPS. Mas sirvo para companheira de viagem porque, também, noutra etapa do caminho, procuro todos os dias o mesmo que tu: "descobrir quem sou".
Então, concluí que a tua frase nao só resume a essência da adolescência mas da própria vida.
Não sei sempre quem és e tenho a certeza de que já foste, já fomos ambas, outras coisas e que seremos, ao longo do caminho, mil outras possibilidades. Ser é uma coisa complexa e fluida, não rígida e fechada, e foi contigo, é contigo, que eu entendo tudo isto sem angústia nem ânsias de chegar a conclusões, apenas com a humildade de aceitar que este é somente um caminho e que bom que é percorrê-lo contigo, que maravilhosas as vistas, que incrível a conversa e ideias esgrimidas durante a caminhada, que aconchegantes e intensos os silêncios, que magia de acertarmos os passos tantas vezes.
Eu também quero descobrir quem és, em todas as tuas idades e versões, desejando que te mantenhas equilibrada na corda bamba da adolescência, alinhada com o bem que é como uma procissão e volta sempre ao lugar de onde partiu. Que nunca te faltem mantimentos de auto-confiança, que os teus sapatos de caminhada nunca cedam aos pisos irregulares e com pedras, que nunca te preocupes com tempos e marcas e competição mas que nunca te esqueças do foco, do propósito e da desfrutar o caminho. Todos os pontos cardeais e todas as estrelas do céu te guiarão no caminho certo porque, um dia perceberás isto melhor que nunca, a tua bússola está sempre mas sempre contigo, implantada no teu coração.
Feliz aniversário, meu amor, aqui estou para descobrir contigo quem és. E és sempre o meu amor.

domingo, 2 de outubro de 2022

Mámen

 



Ele.

Com síndrome de impostor. Cauteloso e sensato. Não gosta de arriscar quando há possibilidade de falhar. Nunca se acha realmente bom, o que é uma terrível falha, pois é genial numa data de coisas. Já aprendeu a traçar fronteiras e a impor limites, especialmente comigo, que não sou cautelosa nem sensata e acho sempre que vou conseguir, mesmo que não consiga. Que não sou assim tão boa numa data de coisas.

É o melhor pai que conheço e não digo isto por ser o pai da filha que também é minha. É porque é mesmo. E é apenas nesse papel que o impostor engole o síndrome: ele sabe que é realmente bom, o melhor. E talvez por isso não trace grandes fronteiras nem limites à Ana, dona e senhora do seu amor.

Às vezes vem uns ciúmes tolos. Que passam logo porque o melhor presente que se pode dar a uma filha é um pai deste calibre, que eleva a fasquia das relações a um nível estratosférico. Que a Ana nunca aceite menos que um amor assim, do que respeito e ternura assim, sabendo que não poderá nunca haver amor, respeito e ternura tão assins.~

Mas que cresça a saber que não merece menos que isto: dedicação sem fim.

Ele. Que diz que a vida comigo é ter uma voz de GPS internalizada a dizer replanning. E que, odiando mudanças e preferindo estabilidade, alinha comigo em todas as viagens com destinos incertos, sabendo que quase sempre chegaremos a lugares desconhecidos e que tudo bem. Às vezes a Ana tem ciúmes. Que passam logo porque o melhor exemplo que se pode ter sobre a vida e o amor é sentir que, mesmo juntos há 23 anos, uma relação feliz é aquela onde as pessoas continuam a fazer-se rir, a rir em conjunto.

Ele. O Rui. O pai.

O homem que nivela todas as nossas relações. Nada menos que isto. Sabendo sempre que difícil é chegar aos pés disto.
Ele. O nosso amor.

sábado, 3 de setembro de 2022

03 de Setembro de 2022: 16 anos de casamento.



Neste dia escrevo quase sempre sobre a nossa história, o nosso passado. Mas a nossa vida é um presente de presente e uma prenda promessa de futuro. Há tanta coisa que fazemos em parelha e somos incríveis: cuidarmos um do outro todos os dias, nas mais pequenas coisas, no café que me fazes e que me passas quente para as mãos mal saio da cama todas as manhãs, a boleia para a porta do trabalho, o braço que me dás sempre quando tenho crises na perna, o colo a vermos filmes, a sintonia com o olhar que dispensa palavras, o entendimento mútuo a educar a Ana, as palavras de incentivo, o silêncio que te permito quando estás a ler, as gargalhadas que te arranco nas viagens intermináveis nas road trips e os karaokes conjuntos porque não se ama alguém que não ouve a mesma canção, eu a aprovar as roupas que escolhes, a chávena de chá que estendemos sempre um ao outro quando estamos doentes, a febre medida com os lábios na testa um do outro, conchinha na cama, mergulhos conjuntos no mar, o abraço em que encaixamos tão bem, estarmos sempre lá, um para o outro, nos momentos profundamente tristes mas nos aplausos em cada vitória porque sempre que um ganha a vitória é de todos.

Há tanta coisa que nos falta fazer no futuro: uma latada com uma videira para partilhamos refeições à sua sombra, um gira discos que havemos de comprar para dancarmos slows sozinhos e descalços no chão da casa nova, viagens e sítios novos a descobrir, sobrevivermos à adolescência da Ana, stalkarmos a bicha aos fins-de-semana durante o Erasmus em Paris, tantos museus na lista para visitarmos, nadar no Mediterrâneo, dançar um tango mal engembrado em Buenos Aires, o livro em conjunto que havemos de escrever, uma oliveira à porta da entrada, voltarmos à Tunísia nas nossas bodas de prata, um cruzeiro quando formos velhos e excursões do Inatel a estâncias termais quando formos reformados, tu a pintares aguarelas num pequeno jardim de inverno, eu a plantar flores que não irei deixar morrer, talvez sermos avós e pudermos, em conjunto, estragar de amor crianças sem as educarmos, um dia um de nós partir primeiro e todo o amor que sentimos sobreviver até que o outro dê o último suspiro.

E mesmo assim não vai acabar porque a Ana será sempre passado, presente e futuro de nós dois e somos mesmo os melhores a fazer pessoas porque juntos ninguém nos apanha, juntos somos imbatíveis e felizes para caramba, mesmo nos dias que não são felizes. E o amor não é apenas a felicidade que persiste: é a felicidade que resiste.

Parabéns a nós, grunguinhos. Faltam nove anos para a grande festarola!

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Aos 9 de Agosto de 2022, à Ana por ocasião do seu 10º aniversário

Há dez anos deixaste de ser uma imagem difusa, abstracta, a preto e branco e estática nos monitores das ecografias.
Às vezes fico a pensar em quem eu era antes de me tornar tua mãe e era uma pessoa diferente, Ana, muito diferente e também por isso, para além de um novo papel social, muito para além disso, trouxeste uma nova pessoa que cabe de forma muito mais confortável em mim, como se a tua vinda tivesse obrigado a ajustar-me e a caber melhor na minha cabeça e corpo e, de repente, contigo ao colo tivesse finalmente chegado à casa de mim.
Há dez anos conheci-te e nunca te estranhei porque te havia sonhado, toda a vida, exactamente assim como és, tão perfeita e tão gentil, tão serena e tão curiosa, com alma de crescida e sorriso de criança, com coração com a idade de todos os nossos antepassados.
Trouxeste-me tudo e a mim mesma, trouxeste-me as pazes com o passado e a esperança no futuro, trouxeste-me expressões de cada um de nós, trouxeste-me um mundo novo inversamente proporcional ao que conhecia de ti até então e tudo se tornou espantosamente claro e concreto e cheio de cores e movimento, cheio de graça, cheio de ti.
Trouxeste-me a infinitude do amor.
Dizem que te dei à luz, que te dei vida mas hoje, dez anos depois, conto-te um segredo: foste e és tu que, todos os dias me dás vida, luz e sentido a mim, filha farol, filha minha.
Feliz ano novo, Ana. Ainda não foram inventadas palavras para explicitar o quanto te amo por amor sem fim, sim, só a ti.

domingo, 8 de maio de 2022

O otimismo do meu marido


Eu: "Ai, caraças: isto está a ser um semestre para lá de "incrível": covid-19, gripe A, febre dos fenos. Assim de repente não há mais nada que me pegue?!"
Ele: " Engravidar é uma opção? Eu pego-te já..."

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Cravo humano

 



Estávamos com preguiça de sair de casa. E depois eu disse: "É bom ter a liberdade de sentirmos preguiça, de podermos escolher e tomar opções, de podermos decidir não ir aos sítios onde devemos ir sem termos consequências, é bom vestires calções e andares na escola e eu ter trabalho fora de casa e educação, sendo mulheres e é bom o pai não ser obrigado a ir lutar para uma guerra a defender países que nunca deviam ter sido reclamados por nós e não sabermos se ele volta com vida".

E tu percebeste e foste ao quarto e mudaste de roupa. "Sou um cravo humano, mãe!"

E enquanto descíamos a avenida, à sombra de cânticos que agora fazem mais sentido, tu abraçavas o pai, contida e observadora, nós gritavamos alto, em liberdade e já sem preguiça porque a democracia fez-se sempre por quem levantou os rabos do sofá e tu permanecias calada.

Passámos por vários cartazes e pessoas, e imagens e símbolos e eu disse-te baixinho: "sabes, Ana, para mim o dizer mais bonito é aquele cartaz com uma frase de Sophia: a poesia faz-se nas ruas" e continuaste calada, a observar tudo o que se passava em redor, as pessoas sem medo de estarem juntas depois de dois anos de pandemia, as bocas sem máscaras e com sorrisos a cantar, abraços e beijos a florescer em cada esquina, novos, velhos, cravos vermelhos em todos os lados, sol a raiar sobre as árvores que emolduram a avenida.

"És de facto um cravo humano, Ana"- repeti-te a sorrir. E não era da tua roupa que falava, tu que és a maior esperança de liberdade em mim.

E, pela primeira vez, em mais de uma hora olhaste em frente e escolheste o cântico que fazia mais sentido para ti, na tua voz de nove anos e liberdade nas veias: "o povo unido jamais será vencido".

A poesia faz-se, de facto, nas ruas. Nunca deixes de pisar o alcatrão com o povo, Ana. Só assim nunca serás vencida.

Meu cravo humano. Minha flor. Liberdade em mim.

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Dias normais




A maravilha do regresso à normalidade dos dias cá dentro. Lá fora continua tudo uma merda: guerra, violação dos direitos humanos, incerteza e a angustia de estarmos à mercê de um ditador russo psicótico.

Mas cá dentro- por mais egocêntrico que pareça- é sempre pior. Porque antes de morarmos no Mundo moramos em nós.

A maravilha do regresso à normalidade. A minha mãe bem, de regresso ao trabalho. A minha mãe sem fumar há mais de um mês e eu sentir o cheiro da minha mãe pela primeira vez, sem resquícios de fumo e de tabaco. A Ana de férias de Páscoa, criativa e energética, às vezes- como agora- estiraçada no sofá a ver uma série na Netflix. A gata a apanhar o sol tímido desta manhã de Abril no peitoral da janela. O Rui em tele-trabalho noutra divisão, eu aqui na sala. Silêncio bom, por escolha e não por angústia ou medo das palavras, na casa. Cheira a café quente na cozinha, acabado de fazer com café solúvel e água fervida e eu acho que vou vender a máquina de pastilhas e comprar uma cafeteira das antigas.

Não faço ainda a cama. Deixo arejar os lençóis sob a incrível colcha de lã de tear que gamei à minha sogra da última vez que estive nos Açores. Já consegui dormir sem insónias, já consigo respirar sem nós na garganta nem a ansiedade a esmiufrar-me o peito.

Agradecemos muitas vezes os dias especiais e esquecemo-nos de valorizar os dias normais, sem sobressaltos e previsíveis, seguros e felizes por definição.

Lá fora está uma merda, eu sei, mas antes de moramos no Mundo moramos em nós. E em nós regressa a normalidade e o aconchego dos dias banais.

Que bom que é.

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Piadola eclética só perceptível por apreciadores de chá

 

Mámen para a Ana (com ar trocista): "Sabes, hoje a mãe mandou um chá para o pai muito bom..."
Eu: "Hey: não te mandei chá ! Só O ARROZ meio queimado..."
Mámen (a correr risco de vida sem o saber): "Ah, era arroz? Achei que era chá lapsang souchong mas em bagas ..."


(Estupor!)

O Mundo divide-se entre...

 

... quem adora peixinhos da horta e os outros.

Panquecas com xarope de misérias

 

Ofereceram-me uma máquina própria, fiz a massa direitinha, sem me enganar numa só medida de farinha, açúcar e leite. À primeira porção de massa percebo que me esqueci de untar a superfície da máquina, a puta da massa enrola, cola-se tudo às bordas e desisto com a grande javardice da massa a parecer argamassa colada no raio de um metro de toda a bancada.
Nas panquecas, como na vida

segunda-feira, 11 de abril de 2022

Fátima

 

Tenho uma relação atribulada com a religião.
Cheguei, aos 41, a um compromisso: tudo o que nos faz sentir bem, acrescenta. Haja ou não racionalidade ou ciência, factos ou evidências: a fé é que nos salva sempre. E a fé pode ter diferentes metamorfoses: podemos ter fé no universo, num Deus, em várias entidades ou nas fadas e nos unicórnios, como a Ana. E tudo é válido, tudo é certo, desde que nos faça sentir bem, desde que nos faça sentir melhor.

A última vez que vim a Fátima com o meu avô, num Citroen AX a cair de podre, com o Rui a fazer a transferência dele para a cadeira de rodas praticamente de bruços, o meu avô chorou como se fosse um menino pequeno. Que era a última vez que cá viria e que, por isso, se queria demorar. Queria ter um lenço e dizer adeus à imagem de Nossa Senhora de Fátima. Queria cantar baixinho, e já sem força nos músculos oro-faciais, o avé Maria. "Ai que parvoíce, avô: claro que voltamos! Que disparate!". Era o que eu desejava, que o tempo de vida do meu avô fosse infinito e que pudessemos voltar sempre. Todas as vezes que nos apetecesse, comigo mais velha, num carro menos rasca, com mais conforto. Mas ambos sabíamos que aquela seria mesmo a última vez e, por isso, dessa vez demorámos todo o tempo do mundo, queimámos velas e ficámos muito tempo a vê-las arder, acenámos com um lenço branco ao passar da imagem e cantámos juntos e baixinho que "apareceu brilhando, a virgem Maria".

Não sei se apareceu ou não. Ao meu avô fez bem, acrescentou.

Quando aqui volto, desde então, venho sempre- sem excepção - ao encontro do meu avô.
Hoje vim agradecer bênçãos: a minha mãe, o novo desafio. Numa semana subi do Inferno ao Céu e não sei que intervenção divina foi esta mas tenho que agradecer: à virgem, ao meu avô, aos meus mortos que mantêm a sua energia sobre mim e me protegem. É esta a minha fé.

A Ana agradeceu a saúde da minha mãe, as boas notas e pediu proteção para os avós dos Açores.
Serena-me saber que ela tem fé e acredita que não está tudo sobre o controlo dela, que há alguma ordem no Universo e que coisas boas podem acontecer a pessoas boas.

Que ela aqui encontre, sempre, de quem vier ao encontro como eu hoje, mais uma vez, nas minhas preces, encontrei o meu avô e tive a certeza de que aquela não foi, nem nunca poderia ser, a última vez que ele aqui viria.

Ele está sempre aqui.

sexta-feira, 8 de abril de 2022

Ir

 Há dias extraordinariamente ambivalentes.

De repente, há uma janela que se abre, se escancara para ti e tu ficas ali, sem saber se trepas, se a fechas e ficas ali, indecisa entre o calor de uma casa que conheces- onde te sentes em família, onde podes andar de pés descalços e sabes que há sempre comida quente sobre a mesa, abraços à tua espera - e o fresco das aventuras que te espera no outro lado do vidro, nas ruas desconhecidas cheias de desafios por desbravar. Sentas-te no parapeito da janela e olhas ora para dentro, ora para fora, o conforto de dentro, a casa e a família e todas as possibilidades em aberto de fora, tudo o que pode acontecer, a novidade, a mudança e tu até não és nada avessa à mudança. Fechas as portinholas e voltas para o calor? Ou pões uma mão de fora para testar a temperatura e, num salto de fé (é sempre de fé que se trata) saltas para o desconhecido (e se for um abismo? E se correr mal? E se ficares perdida ao frio? E se nunca encontrares o caminho para voltar? E se nunca mais houver volta?)?

Há dias extraordinariamente ambivalentes em que ficas de coração partido e, ao mesmo tempo, de coração acelerado porque dói sempre quando deixas quem gostas na mesma proporção do entusiasmo e da expectativa de quem está por conheceres, de quem um dia irás gostar.

Hoje foi um dia extraordinariamente ambivalente e eu vou saltar da janela porque a sorte protege os audazes e a mudança dá um medo do caraças mas nada nos lembra com mais poder de que estamos vivos.

Pode correr mal. Mas também pode correr bem.

Que a sorte, a fé e o afecto de quem fica dentro dos vidros da janela me proteja. Casa será sempre casa mas eu sou feita do verbo ir. Abram-se as janelas de par em par: estou a ir!

Vamos lá.

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Açorianos perceberão


A palavra preferida do Rui é "ensocado",

À moda de São Jorge diz-se "ensucuado" e eu amo expressões açorianas, caraças! 

quarta-feira, 6 de abril de 2022

O Mundo divide-se...

 ... entre quem prefere farófias com doce de ovos e quem prefere farófias com leite creme.

domingo, 3 de abril de 2022

O Mundo divide-se...


... entre as pessoas que têm, pelo menos, um sobrenome que é o nome de uma terra e as outras.
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