domingo, 2 de outubro de 2022

Mámen

 



Ele.

Com síndrome de impostor. Cauteloso e sensato. Não gosta de arriscar quando há possibilidade de falhar. Nunca se acha realmente bom, o que é uma terrível falha, pois é genial numa data de coisas. Já aprendeu a traçar fronteiras e a impor limites, especialmente comigo, que não sou cautelosa nem sensata e acho sempre que vou conseguir, mesmo que não consiga. Que não sou assim tão boa numa data de coisas.

É o melhor pai que conheço e não digo isto por ser o pai da filha que também é minha. É porque é mesmo. E é apenas nesse papel que o impostor engole o síndrome: ele sabe que é realmente bom, o melhor. E talvez por isso não trace grandes fronteiras nem limites à Ana, dona e senhora do seu amor.

Às vezes vem uns ciúmes tolos. Que passam logo porque o melhor presente que se pode dar a uma filha é um pai deste calibre, que eleva a fasquia das relações a um nível estratosférico. Que a Ana nunca aceite menos que um amor assim, do que respeito e ternura assim, sabendo que não poderá nunca haver amor, respeito e ternura tão assins.~

Mas que cresça a saber que não merece menos que isto: dedicação sem fim.

Ele. Que diz que a vida comigo é ter uma voz de GPS internalizada a dizer replanning. E que, odiando mudanças e preferindo estabilidade, alinha comigo em todas as viagens com destinos incertos, sabendo que quase sempre chegaremos a lugares desconhecidos e que tudo bem. Às vezes a Ana tem ciúmes. Que passam logo porque o melhor exemplo que se pode ter sobre a vida e o amor é sentir que, mesmo juntos há 23 anos, uma relação feliz é aquela onde as pessoas continuam a fazer-se rir, a rir em conjunto.

Ele. O Rui. O pai.

O homem que nivela todas as nossas relações. Nada menos que isto. Sabendo sempre que difícil é chegar aos pés disto.
Ele. O nosso amor.

sábado, 3 de setembro de 2022

03 de Setembro de 2022: 16 anos de casamento.



Neste dia escrevo quase sempre sobre a nossa história, o nosso passado. Mas a nossa vida é um presente de presente e uma prenda promessa de futuro. Há tanta coisa que fazemos em parelha e somos incríveis: cuidarmos um do outro todos os dias, nas mais pequenas coisas, no café que me fazes e que me passas quente para as mãos mal saio da cama todas as manhãs, a boleia para a porta do trabalho, o braço que me dás sempre quando tenho crises na perna, o colo a vermos filmes, a sintonia com o olhar que dispensa palavras, o entendimento mútuo a educar a Ana, as palavras de incentivo, o silêncio que te permito quando estás a ler, as gargalhadas que te arranco nas viagens intermináveis nas road trips e os karaokes conjuntos porque não se ama alguém que não ouve a mesma canção, eu a aprovar as roupas que escolhes, a chávena de chá que estendemos sempre um ao outro quando estamos doentes, a febre medida com os lábios na testa um do outro, conchinha na cama, mergulhos conjuntos no mar, o abraço em que encaixamos tão bem, estarmos sempre lá, um para o outro, nos momentos profundamente tristes mas nos aplausos em cada vitória porque sempre que um ganha a vitória é de todos.

Há tanta coisa que nos falta fazer no futuro: uma latada com uma videira para partilhamos refeições à sua sombra, um gira discos que havemos de comprar para dancarmos slows sozinhos e descalços no chão da casa nova, viagens e sítios novos a descobrir, sobrevivermos à adolescência da Ana, stalkarmos a bicha aos fins-de-semana durante o Erasmus em Paris, tantos museus na lista para visitarmos, nadar no Mediterrâneo, dançar um tango mal engembrado em Buenos Aires, o livro em conjunto que havemos de escrever, uma oliveira à porta da entrada, voltarmos à Tunísia nas nossas bodas de prata, um cruzeiro quando formos velhos e excursões do Inatel a estâncias termais quando formos reformados, tu a pintares aguarelas num pequeno jardim de inverno, eu a plantar flores que não irei deixar morrer, talvez sermos avós e pudermos, em conjunto, estragar de amor crianças sem as educarmos, um dia um de nós partir primeiro e todo o amor que sentimos sobreviver até que o outro dê o último suspiro.

E mesmo assim não vai acabar porque a Ana será sempre passado, presente e futuro de nós dois e somos mesmo os melhores a fazer pessoas porque juntos ninguém nos apanha, juntos somos imbatíveis e felizes para caramba, mesmo nos dias que não são felizes. E o amor não é apenas a felicidade que persiste: é a felicidade que resiste.

Parabéns a nós, grunguinhos. Faltam nove anos para a grande festarola!

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Aos 9 de Agosto de 2022, à Ana por ocasião do seu 10º aniversário

Há dez anos deixaste de ser uma imagem difusa, abstracta, a preto e branco e estática nos monitores das ecografias.
Às vezes fico a pensar em quem eu era antes de me tornar tua mãe e era uma pessoa diferente, Ana, muito diferente e também por isso, para além de um novo papel social, muito para além disso, trouxeste uma nova pessoa que cabe de forma muito mais confortável em mim, como se a tua vinda tivesse obrigado a ajustar-me e a caber melhor na minha cabeça e corpo e, de repente, contigo ao colo tivesse finalmente chegado à casa de mim.
Há dez anos conheci-te e nunca te estranhei porque te havia sonhado, toda a vida, exactamente assim como és, tão perfeita e tão gentil, tão serena e tão curiosa, com alma de crescida e sorriso de criança, com coração com a idade de todos os nossos antepassados.
Trouxeste-me tudo e a mim mesma, trouxeste-me as pazes com o passado e a esperança no futuro, trouxeste-me expressões de cada um de nós, trouxeste-me um mundo novo inversamente proporcional ao que conhecia de ti até então e tudo se tornou espantosamente claro e concreto e cheio de cores e movimento, cheio de graça, cheio de ti.
Trouxeste-me a infinitude do amor.
Dizem que te dei à luz, que te dei vida mas hoje, dez anos depois, conto-te um segredo: foste e és tu que, todos os dias me dás vida, luz e sentido a mim, filha farol, filha minha.
Feliz ano novo, Ana. Ainda não foram inventadas palavras para explicitar o quanto te amo por amor sem fim, sim, só a ti.

domingo, 8 de maio de 2022

O otimismo do meu marido


Eu: "Ai, caraças: isto está a ser um semestre para lá de "incrível": covid-19, gripe A, febre dos fenos. Assim de repente não há mais nada que me pegue?!"
Ele: " Engravidar é uma opção? Eu pego-te já..."

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Cravo humano

 



Estávamos com preguiça de sair de casa. E depois eu disse: "É bom ter a liberdade de sentirmos preguiça, de podermos escolher e tomar opções, de podermos decidir não ir aos sítios onde devemos ir sem termos consequências, é bom vestires calções e andares na escola e eu ter trabalho fora de casa e educação, sendo mulheres e é bom o pai não ser obrigado a ir lutar para uma guerra a defender países que nunca deviam ter sido reclamados por nós e não sabermos se ele volta com vida".

E tu percebeste e foste ao quarto e mudaste de roupa. "Sou um cravo humano, mãe!"

E enquanto descíamos a avenida, à sombra de cânticos que agora fazem mais sentido, tu abraçavas o pai, contida e observadora, nós gritavamos alto, em liberdade e já sem preguiça porque a democracia fez-se sempre por quem levantou os rabos do sofá e tu permanecias calada.

Passámos por vários cartazes e pessoas, e imagens e símbolos e eu disse-te baixinho: "sabes, Ana, para mim o dizer mais bonito é aquele cartaz com uma frase de Sophia: a poesia faz-se nas ruas" e continuaste calada, a observar tudo o que se passava em redor, as pessoas sem medo de estarem juntas depois de dois anos de pandemia, as bocas sem máscaras e com sorrisos a cantar, abraços e beijos a florescer em cada esquina, novos, velhos, cravos vermelhos em todos os lados, sol a raiar sobre as árvores que emolduram a avenida.

"És de facto um cravo humano, Ana"- repeti-te a sorrir. E não era da tua roupa que falava, tu que és a maior esperança de liberdade em mim.

E, pela primeira vez, em mais de uma hora olhaste em frente e escolheste o cântico que fazia mais sentido para ti, na tua voz de nove anos e liberdade nas veias: "o povo unido jamais será vencido".

A poesia faz-se, de facto, nas ruas. Nunca deixes de pisar o alcatrão com o povo, Ana. Só assim nunca serás vencida.

Meu cravo humano. Minha flor. Liberdade em mim.

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Dias normais




A maravilha do regresso à normalidade dos dias cá dentro. Lá fora continua tudo uma merda: guerra, violação dos direitos humanos, incerteza e a angustia de estarmos à mercê de um ditador russo psicótico.

Mas cá dentro- por mais egocêntrico que pareça- é sempre pior. Porque antes de morarmos no Mundo moramos em nós.

A maravilha do regresso à normalidade. A minha mãe bem, de regresso ao trabalho. A minha mãe sem fumar há mais de um mês e eu sentir o cheiro da minha mãe pela primeira vez, sem resquícios de fumo e de tabaco. A Ana de férias de Páscoa, criativa e energética, às vezes- como agora- estiraçada no sofá a ver uma série na Netflix. A gata a apanhar o sol tímido desta manhã de Abril no peitoral da janela. O Rui em tele-trabalho noutra divisão, eu aqui na sala. Silêncio bom, por escolha e não por angústia ou medo das palavras, na casa. Cheira a café quente na cozinha, acabado de fazer com café solúvel e água fervida e eu acho que vou vender a máquina de pastilhas e comprar uma cafeteira das antigas.

Não faço ainda a cama. Deixo arejar os lençóis sob a incrível colcha de lã de tear que gamei à minha sogra da última vez que estive nos Açores. Já consegui dormir sem insónias, já consigo respirar sem nós na garganta nem a ansiedade a esmiufrar-me o peito.

Agradecemos muitas vezes os dias especiais e esquecemo-nos de valorizar os dias normais, sem sobressaltos e previsíveis, seguros e felizes por definição.

Lá fora está uma merda, eu sei, mas antes de moramos no Mundo moramos em nós. E em nós regressa a normalidade e o aconchego dos dias banais.

Que bom que é.

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Piadola eclética só perceptível por apreciadores de chá

 

Mámen para a Ana (com ar trocista): "Sabes, hoje a mãe mandou um chá para o pai muito bom..."
Eu: "Hey: não te mandei chá ! Só O ARROZ meio queimado..."
Mámen (a correr risco de vida sem o saber): "Ah, era arroz? Achei que era chá lapsang souchong mas em bagas ..."


(Estupor!)

O Mundo divide-se entre...

 

... quem adora peixinhos da horta e os outros.

Panquecas com xarope de misérias

 

Ofereceram-me uma máquina própria, fiz a massa direitinha, sem me enganar numa só medida de farinha, açúcar e leite. À primeira porção de massa percebo que me esqueci de untar a superfície da máquina, a puta da massa enrola, cola-se tudo às bordas e desisto com a grande javardice da massa a parecer argamassa colada no raio de um metro de toda a bancada.
Nas panquecas, como na vida

segunda-feira, 11 de abril de 2022

Fátima

 

Tenho uma relação atribulada com a religião.
Cheguei, aos 41, a um compromisso: tudo o que nos faz sentir bem, acrescenta. Haja ou não racionalidade ou ciência, factos ou evidências: a fé é que nos salva sempre. E a fé pode ter diferentes metamorfoses: podemos ter fé no universo, num Deus, em várias entidades ou nas fadas e nos unicórnios, como a Ana. E tudo é válido, tudo é certo, desde que nos faça sentir bem, desde que nos faça sentir melhor.

A última vez que vim a Fátima com o meu avô, num Citroen AX a cair de podre, com o Rui a fazer a transferência dele para a cadeira de rodas praticamente de bruços, o meu avô chorou como se fosse um menino pequeno. Que era a última vez que cá viria e que, por isso, se queria demorar. Queria ter um lenço e dizer adeus à imagem de Nossa Senhora de Fátima. Queria cantar baixinho, e já sem força nos músculos oro-faciais, o avé Maria. "Ai que parvoíce, avô: claro que voltamos! Que disparate!". Era o que eu desejava, que o tempo de vida do meu avô fosse infinito e que pudessemos voltar sempre. Todas as vezes que nos apetecesse, comigo mais velha, num carro menos rasca, com mais conforto. Mas ambos sabíamos que aquela seria mesmo a última vez e, por isso, dessa vez demorámos todo o tempo do mundo, queimámos velas e ficámos muito tempo a vê-las arder, acenámos com um lenço branco ao passar da imagem e cantámos juntos e baixinho que "apareceu brilhando, a virgem Maria".

Não sei se apareceu ou não. Ao meu avô fez bem, acrescentou.

Quando aqui volto, desde então, venho sempre- sem excepção - ao encontro do meu avô.
Hoje vim agradecer bênçãos: a minha mãe, o novo desafio. Numa semana subi do Inferno ao Céu e não sei que intervenção divina foi esta mas tenho que agradecer: à virgem, ao meu avô, aos meus mortos que mantêm a sua energia sobre mim e me protegem. É esta a minha fé.

A Ana agradeceu a saúde da minha mãe, as boas notas e pediu proteção para os avós dos Açores.
Serena-me saber que ela tem fé e acredita que não está tudo sobre o controlo dela, que há alguma ordem no Universo e que coisas boas podem acontecer a pessoas boas.

Que ela aqui encontre, sempre, de quem vier ao encontro como eu hoje, mais uma vez, nas minhas preces, encontrei o meu avô e tive a certeza de que aquela não foi, nem nunca poderia ser, a última vez que ele aqui viria.

Ele está sempre aqui.

sexta-feira, 8 de abril de 2022

Ir

 Há dias extraordinariamente ambivalentes.

De repente, há uma janela que se abre, se escancara para ti e tu ficas ali, sem saber se trepas, se a fechas e ficas ali, indecisa entre o calor de uma casa que conheces- onde te sentes em família, onde podes andar de pés descalços e sabes que há sempre comida quente sobre a mesa, abraços à tua espera - e o fresco das aventuras que te espera no outro lado do vidro, nas ruas desconhecidas cheias de desafios por desbravar. Sentas-te no parapeito da janela e olhas ora para dentro, ora para fora, o conforto de dentro, a casa e a família e todas as possibilidades em aberto de fora, tudo o que pode acontecer, a novidade, a mudança e tu até não és nada avessa à mudança. Fechas as portinholas e voltas para o calor? Ou pões uma mão de fora para testar a temperatura e, num salto de fé (é sempre de fé que se trata) saltas para o desconhecido (e se for um abismo? E se correr mal? E se ficares perdida ao frio? E se nunca encontrares o caminho para voltar? E se nunca mais houver volta?)?

Há dias extraordinariamente ambivalentes em que ficas de coração partido e, ao mesmo tempo, de coração acelerado porque dói sempre quando deixas quem gostas na mesma proporção do entusiasmo e da expectativa de quem está por conheceres, de quem um dia irás gostar.

Hoje foi um dia extraordinariamente ambivalente e eu vou saltar da janela porque a sorte protege os audazes e a mudança dá um medo do caraças mas nada nos lembra com mais poder de que estamos vivos.

Pode correr mal. Mas também pode correr bem.

Que a sorte, a fé e o afecto de quem fica dentro dos vidros da janela me proteja. Casa será sempre casa mas eu sou feita do verbo ir. Abram-se as janelas de par em par: estou a ir!

Vamos lá.

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Açorianos perceberão


A palavra preferida do Rui é "ensocado",

À moda de São Jorge diz-se "ensucuado" e eu amo expressões açorianas, caraças! 

quarta-feira, 6 de abril de 2022

O Mundo divide-se...

 ... entre quem prefere farófias com doce de ovos e quem prefere farófias com leite creme.

domingo, 3 de abril de 2022

O Mundo divide-se...


... entre as pessoas que têm, pelo menos, um sobrenome que é o nome de uma terra e as outras.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

A minha mãe fez anos e eu não lhe escrevi nada

 A minha mãe fez anos e eu não lhe escrevi nada.

Fiquei a consumir-me desde então porque não lhe tinha escrito nada. Não gosto de estar em falta com a minha mãe.

Estava doente nesse dia. Uma infecção urinária que não passa. Mas fui deixar a Ana à escola e passei no supermercado para comprar coisas para fazer o jantar para a família, na minha casa. E depois fui à fábrica de bolos e comprei o melhor bolo de amêndoa e chantilly do mundo, com raspas de chocolate por cima. E passei no shopping para lhe comprar um presente. No espaço de uma hora, sempre a correr. Trabalhei toda a manhã e tinha febre. Na minha hora de almoço dei uma geral na casa, para que ao jantar estivesse tudo apresentável. Arrastei-me a fazer isto. E voltei a trabalhar até ao fim da tarde. Acabei o trabalho e pus a mesa bonita. Fiz bacalhau espiritual, leite creme e preparei todo o jantar. Encomendei picanha e fomos buscá-la ao restaurante.

Chegou a minha mãe com a Ana e a seguir toda a família. Foi um jantar tão bom, que quase me esqueci da febre, da infecção urinária e do cansaço extremo.

Depois ao deitar-me percebi que não lhe tinha escrito nada bonito. A minha mãe gosta de palavras bonitas, eu bem sei. E merece todas as do Mundo, porque é a mulher mais valente e inteira que eu conheço.
A minha mãe fez anos e eu não lhe escrevi nada. Na sala ainda há restos do seu aniversário, incluindo o quadro de luz que a Ana lhe preparou.

A minha mãe gosta de palavras bonitas mas ensinou-me que as palavras valem pouco quando não são acompanhadas por gestos de bem querer. Acho que estarei perdoada.
Eu tenho a minha mãe e a Ana tem-me a mim: todo o amor entre mães e filhas é por aglutinação. Não poderia ter melhor. Acho que mereço esta mãe, a minha mãe, apesar de não ter escrito palavras mas lhe ter dedicado todo o meu dia, mesmo sem estar ao seu lado.

Amar é sempre cuidar e querer bem.

Talvez as palavras estejam sobrevalorizadas.

Fico a dever-te um poema, mãe mas tenho troco, gorgeta e juros no amor infinito que sinto por ti. No bem querer.

Parabéns. Também a mim que te tenho só para mim.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

No soy Georgina

 Descias as escadas a caminho da ala autónoma e eu vi-te pela primeira vez. Os nossos olhares cruzaram-se num segundo e eu senti qualquer coisa cá dentro que podia ser amor à primeira vista, acreditasse eu na altura ou mesmo hoje no amor à primeira vista. Horas depois éramos amigos, como se nos conhecessos desde sempre, como se eu na altura soubesse onde ficava São Jorge no mapa e eu nem sabia ao certo tão pouco o nome das nove ilhas dos Açores. 

Depois mudei-me para a tua turma, os professores ficavam confusos, nunca pedi transferência mas às tantas as minhas notas saiam nas vossas pautas e tudo fluía, sentávamo-nos lado a lado no auditório, tu davas-me, pacientemente, explicações de história nos jardins de Belém e eu retribuía, trocista, tudo o que sabia sobre neurónios e sinapses e a estrutura do cérebro naquela cadeira do professor esquisito. 

Depois foi num instante Natal e fomos ao Martim Moniz comprar prendas, não tínhamos dinheiro para nada, comiamos sempre na macrobiótica da cantina, pediste-me dinheiro emprestado e eu achei que não voltarias das férias da ilha que eu não sabia localizar no mapa, nem me devolverias os cinco contos e era início do segundo semestre e eu tinha saudades tuas, queria lá saber do dinheiro para alguma coisa. E voltaste, devolveste o dinheiro e trouxeste-me um presente, só para mim, para mais nenhuma amiga e uns dias depois cravaste-me um beijo e eu não me fiz de esquisita, mortinha que estava para deixar de fazer cerimónias.

 E depois já desciamos a avenida de mãos dadas, e passávamos férias juntos, e um dia os teus pais vieram cá e conheci-os, também já ias a minha casa há algum tempo, todos sempre gostaram de ti, é mesmo fácil gostar de ti. 

E estudavas e trabalhavas no café, eu dava explicações, íamos de carreira que apanhavamos no arco do cego passar fins de semana em pensões com percevejos em terras mais longe e depois o curso acabou, tu ficaste, começámos a trabalhar, eu, tu, daí a alugar a casa na praceta foi um passo, casar pela igreja dois, ter a Ana num piscar de olhos, mudarmos de casa uma e depois outra vez, mobília às costas, literalmente, sempre fácil, mesmo quando era dificil.

E houve crises que não nos lembramos por preguiça ou por escolha, não gostamos de coisas complicadas, e há sempre histórias a serem escritas, aguarelas a serem pintadas, vida a ser vivida e momentos importantes a ser construídos.

 Foste e és a melhor escolha da minha vida, a única que fica sempre, a decisão mais acertada, a companhia mais certeira, a pessoa mais fácil de gostar, o pai mais fantástico que já conheci e um marido, acima de tudo, incrivelmente bondoso, generoso, paciente e um homem bom. Depois há o amor, mas do amor não há muito que se lhe diga, não tem mérito, não dá trabalho, é fácil gostar de ti, se acreditasse em amor à primeira vista seria isso, assim eu só amor em todas as vistas, em todos os ciclos, em todas as células que amo em ti. 

É fácil amar-te porque não há outra alternativa face ao homem incrível que foste crescendo comigo. Para a Ana. Para mim. 

Parabéns, Rui. 

No soy Georgina, mas o melhor do Mundo sequei-o eu.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

domingo, 16 de janeiro de 2022

A estrela da serra



Subimos a serra devagar. Era fim de tarde e tínhamos esperança que quando o sol se pusesse ficasse mais frio e pudesse nevar de verdade. À medida que íamos subindo e os graus descendo, vimos que o que havia de neve era miserável, à excepção de numa pequena encosta que vislumbrávamos. Chegados à Torre percebemos tudo e fomos fazer tempo a beber um chocolate quente enquanto as senhoras faziam o fecho do café e o sol, realmente, se punha. Fomos os últimos clientes. O trânsito para descer a serra intensificava-se e nós a vê-los todos, um a um, partir.

Quando só restávamos mesmo nós ligaram os aspersores gigantes de água para que a mesma gelasse assim que batesse na dita encosta. Neve à força mas, ainda assim, neve. Neve para no dia seguinte alimentar a escola de ski. Neve, ainda assim.

E, nesse instante, em que a neve era fabricada à força da vontade do homem à nossa frente por aspersores gigantes e holofotes- e já sem nenhuma alma em redor- subimos a pista vazia, com sacos de plástico do lixo e descemos uma, duas, dezenas de vezes a encosta, com tombos e gargalhadas, escorregadelas e corridas para ver quem chegava primeiro lá baixo.

A minha filha gargalhava tão alto que era como se a Serra se fechasse para a ouvir, lua cheia no céu, três graus abaixo de zero, eco, neve e estrelas. Não perguntou porque os aspersores faziam chover água, o que eram os holofotes, porque não lhe tínhamos comprado um trenó e lhe tínhamos dado um saco de plástico para a mão. Não perguntou nada. Escorregou, subiu, voltou a escorregar, gargalhou sempre. Ininterruptamente.

Já cansados e de barriga cheia de neve, sozinhos no alto da serra e no caminho para o carro abraçou o pai. Eu fiquei para trás para os fotografar e, logo a seguir a este click, esperaram por mim e ela abraçou-me também: "Agora já descobri porque se chama serra da Estrela, mãe!". Porquê, Ana? " Porque a neve mágica é só mesmo a esta hora da noite, à luz das estrelas, não é?" Sorri e acenei. "Faz sentido. Por isso é que não fica aqui ninguém até à noite: deve ser mesmo um mistério bem guardado. Podemos combinar uma coisa os três?" Conta! " Este fica o nosso segredo: não contamos mesmo a ninguém!"

Shiiiiuu!

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Borboletas na barriga

 


Preciso de me rodear de coisas bonitas (e confortáveis). Não quero saber se está na moda (odeio o conceito de moda), se os outros gostam, se é consensual: se eu cismo com uma coisa, eu vou atrás.
Vale com tudo, também com objectos. Eu gosto de objectos, mais pela simbologia que pela utilidade, pelos gatilhos emocionais que me provocam.
Então eu cismei que queria redecorar a sala para enterrar 2021: trocamos os móveis de sitio, pomos coisas na arrecadação e trazemos outras que por lá andam, reforçamos as estantes porque livros é aquela coisa do first things first e, já com tudo nos novos sítios, percebemos que sobrou a parede da mesa de jantar e, de repente eu queria uma parede de pratos decorativos. Ah, está demode! Who cares? Eu quero muito.
Fui à feira da ladra e comprei dois, a Manuela de Guimarães disse que me dava uma série deles mas eu cismo com pratos com um tema específico: fauna e flora. E eu, a dizer que, caraças, não me chamasse eu Liliana se não haveria de ter um prato com uma borboleta azul.
Procurei por todo o lado e nada do bendito prato. Existia apenas na minha cabeça.
Hoje ele trancou-se no quarto à tarde, enquanto eu reunia em teletrabalho e, quando já quase noite vim à tona de trás do computador, ali estava na parede da minha sala: o prato com a borboleta azul.
O meu marido decidiu, a um dia de comemorarmos 23 anos de namoro, criar a fauna, a flora e pintar o princípio do Mundo em pratos na parede para mim.
Começou, como há 23 anos, a criar para mim uma Primavera completa.
Obrigada, Rui.

O Mundo divide-se...

 

...entre quem arruma os livros por ordem alfabética de autores e os outros

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Andorinha

 Em 2021 senti-me profundamente triste. E aflita. E impotente E devastada. Tive terror em perder a minha tia e perdi o meu tio num momento de terror. Confortei a minha prima. Alimentei o meu outro tio. Percebi definitivamente que nunca mais retomarei relações com a minha outra prima Tomei conta de muita gente e pouca de mim. Fui promovida na pior altura para o ser. Trabalhei horrores. Tive muitas mudanças no trabalho até que apareceu a Ana Lúcia para me serenar. Serenou. Ajudei a organizar uma manifestação pela vida independente. Gritei num megafone. Fiz uma vigília e dormi à porta da Assembleia da República. Reforcei a certeza de que o meu casamento é para sempre e que há amores para a vida toda (até podem não haver casamentos, mas amor há!). Perdi a Joana. Dei centenas de horas de formação. Vi a Monalisa. Tive o melhor jantar do ano aos pés da Torre Eiffel. Vi, finalmente, toda a Casa de Papel. Tive pouco com amigos. Voltei a organizar campos de férias. Diverti-me tanto na Isla Mágica. Fui vacinada. Falhei nos exames de rotina da mama mas compenso em breve. Passei o dia da mãe com a minha mãe sem máscara e viseira. E com a Ana. As três na Lx Factory. Vi um espectáculo de flamenco ao vivo. E comemos tantas tapas, os três felizes em Sevilha. Comovi-me na Eurodisney. Namorei muito no Verão com tinto de Verano e Manchego. No meu aniversário um conjunto de bandalhos bons juntou-se no mato para me cantar os parabens. Foi tão importante para mim. Comi marisco em São Martinho do Porto. Fui feliz em Elvas com a Inês e o Bruno. Recebi os meus sogros em tranquilidade. Li pouco. Fui a Itália em trabalho e conheci gente incrível A Ana fez a sua primeira comunhão. A minha mãe esteve sempre por perto e isso é tudo para mim. Fui feliz com a Eillen a cantar a banda sonora da Tieta. Fiz yoga no Moinho de Maneio. A Ana cresceu, cada vez mais pessoa inteira e boa. Aprendi a jogar Rummy. Permiti-me a falhar e abracei a vulnerabilidade com auto-compaixão. Em 2021 fui uma andorinha sempre em vôo numa constante tentativa de regresso a casa.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Dores (maternais) de crescimento

 A gente anota o primeiro dia em que se sentam, em que lhes nasce o primeiro dente e depois em que lhes cai também, em que dão os primeiros passos, do primeiro dia de creche e depois, todos os anos, de escola. A gente anota a primeira palavra dita e a primeira escrita, o primeiro desenho de figura humana e o inaugurar de tantos estadios.

Há sempre o encanto desmesurado nos inícios, nos princípios, nos começos, nas primeiras vezes.
Mas são muitos os dias que são os últimos dias em que fecham ciclos.

Este foi, provavelmente, o último dia em que a Ana assomou à janela para esperar o Pai Natal.
Há uma beleza nostálgica no fim de ciclos. Foi incrivelmente bom viver a magia do velho de barbas nove anos com ela: ser o pai, acompanhá-la a escrever-lhe, ir de mãos dadas com ela aos CTT por as cartas, ano após ano, tocar o sino escondido da na cozinha, segui-la na correria de tentar vislumbrá-lo, ouvi-la a jurar que o viu no céu porque só os olhos das crianças vêem o invisível.

De janela aberta anoto aqui a luz do balão para sinalizar o spot, a caixa de take away com bolachas e cenouras porque há covid e ele tem que levar o repasto porque já não se come ao postigo e o sorriso de quem desconfia que não é real mas que escolhe em acreditar.

A magia não fechará a janela, mesmo que tenha sido esta a última vez.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Com força e baixinho

 


Quando o avô morreu eu entrei na sala e tu choravas baixinho. Quando me viste choraste mais, com mais força, mas simultaneamente mais baixinho, e tapaste o rosto com aos mãos como se tivesses vergonha da fragilidade, embaraço da vulnerabilidade. Tinhas sido sempre crescida, durante toda a minha vida, era a primeira vez que te via pequenina, com as mãos a tapar os olhos verde azeitona, verde louro, verde teus avó, como uma criança que esconde a cara com o bibe quando fica assustada e tem medo do Mundo.

Eu também tive medo, avó, desse Mundo que veio depois do avô e que nunca mais foi o mesmo e também chorei baixinho e com força, acho que foi contigo que aprendi a chorar sem histerias, baixinho e com força, como quando tinha muitas dores e, já adultas - as duas- tu vinhas para a minha cama e te deitavas ao meu lado a embalar-me para me adormeceres a dor.

Naquele dia o avô morreu e tu não quiseste ir ao velório, nem ao funeral e ninguém percebeu porquê. Ficaste em casa a fazer comida, e tu mal conseguias fazer comida, a mão que me embalava tinha sido silenciada pelo AVC, continuava porém a fazer comida e a embalar-me, no Minho as mulheres alimentam os vivos que choram os mortos.

E nunca mais abriste a porta do teu quarto e do avô, já não havia vocês os dois, só a porta fechada, como o Mundo fechado ficou e talvez, por isso mesmo, tu tapavas o rosto como uma criança com medo tapa a cara com a fralda do bibe. Três anos depois adormeceste na sala, olhos verde louro fechados, nunca mais tinhas entrado no quarto, fizeste comida até à última refeição, a mão com o AVC, e dessa vez não acordaste, assim com força e baixinho partiste, talvez para ires fazer comida para o avô que te esperava, botas de borracha e sorriso com dentes tortos.

E eu fiquei, e deixaste-me a Ana na barriga, segredo que só descobri dias depois, para poder ter quem embalar, para me abrir as portas do teu quarto e do Mundo, para usar bibes sem tapar o rosto, para poder continuar a chamar Ana como te chamava a ti, vó Ana, para me deitar ao seu lado hoje, ela já dorme, e embalá-la, com força e baixinho, para ver se adormeço a saudade que, agora crescida, trago em mim.

Amanha faço comida eu.

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

O Mundo divide-se...

... entre as pessoas que, mal espreita o Outono, ainda andam de chinelos e as que passam logo a andar de calçado fechado/botas

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Gostava de morrer velha.




Gostava de morrer velha. Velha, velhinha. Ainda melhor, gostava de morrer velha e de velhice. Como se a vida quisesse pedir a conta final e fechar a despesa, satisfeita e de papo cheio, pronta a levantar o rabo da mesa e sair de mansinho, olhos fechados, memórias arrumadas, papo cheio, sensação de fecho da loja.

Contas feitas, fecharia os olhos, papudos e enrugados, com aquele esverdeado que todos os olhos dos velhos ficam, verde árvore para se poder regressar à terra com a copa a tocar no céu e largariam a VT, acho que se diz assim nos programas de televisão, com os momentos mais felizes que acumulei.

Nesse pequeno trecho, de uma vida longa, apareceriam os burros do @moinhodomaneio, as ondas do mar negro do cabelo da Anabela sem mariquice nem nhonhozice a darem-nos as boas vindas de verdade, o ribeiro que desbravamos com a canoa azul e gargalhadas amarelas de sol, os saltos da minha filha no trampolim e os risos a chegarem bem alto no espaço, caudas de sereia na piscina, agora a Eillen e eu a gargalharmos, à ceia, enquanto cantamos a banda sonora da Tieta do Roque Santeiro depois de jogarmos Remmy a beber chá de caramelo e a comer broas de mel e estas manhãs preguiçosas em que quero sair para o pequeno almoço e a Ana dorme no meio de nós, as persianas de madeira azul a rebentarem para nós deixarmos entrar o sol e a vida que é vivida no presente, que deve ser vivida como um presente. Uma cauda de sereia a secar à porta, no fim.

Queria morrer velhinha agarrada ao papel colorido da vida que desembrulhei, contemplando o passado que foi um presente, mete-lo debaixo do braço e dizer adeus, estava tudo óptimo, obrigada, sim?

domingo, 26 de setembro de 2021

O Mundo divide-se...

 ...... entre as pessoas que acordam com o humor certo e não querem conversa de manhã e as outras.

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Apartas o cabelo ao meio

"Apartas o cabelo ao meio, agarras um pedaço de cada vez e penteias devagar. Depois das duas partes penteadas, juntas tudo e penteias por inteiro, de uma só vez". Sempre que me vejo em frente do espelho da casa de banho, a pentear o cabelo, sempre sem excepção, oiço a voz da minha avó nesta ladainha: "apartas o cabelo ao meio...".

Eu era adolescente e as hormonas tinham tomado conta do meu cabelo, outrora liso, agora cheio de jeitos e rebelde, muito fino e muito basto, sempre a enriçar e a fazer nós. Às vezes pensava em cortá-lo para me poupar ao trabalho de o desembaraçar todas as manhãs, enervava-me, irritava-me, apetecia-me escová-lo à bruta, partir os nós e o cabelo com ele mas depois a voz, paciente, da minha avó: " apartas o cabelo ao meio...".

A minha avó sempre me pediu que não cortasse o cabelo e sempre que eu desesperava em frente do espelho vinha por trás e tirava-me a escova da mão impaciente e começava a pentear-me: "apartas o cabelo ao meio".

Um dia, era eu universitária e numa manhã de bad hair matinal a minha avó penteava-me, sem pressa e dizia-me a ladainha "apartas o cabelo ao meio..." e eu sorri e atirei "esse conselho dos cabelos aplica-se a todos os problemas, 'vó: temos sempre que os apartar e desembaraçar aos poucos, pedaço a pedaço e depois, com tudo com menos nós e embaraços, dar uma escovadela final, né?" E a minha avó riu e disse "nos cabelos e na bida, tem que ser sempre assim: apartar sempre ao meio, agarrar um pedaço de cada vez e desembaraçar cada pedaço para depois juntar tudo e passar uma escovadela no fim e ficar tudo certinho".

Tenho saudades das mãos da minha avó na escova, da escova no cabelo, da expressão "apartar" e da vida ser dita com "b" de bela e de boa. E talvez seja por isso que eu nunca corto o cabelo: para nunca me esquecer como se resolvem os problemas na vida ou talvez apenas para, sempre que me olho ao espelho, nunca deixar de ouvir a voz da minha avó pela manhã. 

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Casamentolímpicos: rumo à prata

 


O segredo de um casamento é, no fim do dia, da semana, da vida, no fim de vários caminhos, atalhos e desvios, no fim do tempo e do espaço arranjarmos um ponto fixo de intersecção para nos encontrarmos.
O segredo de uma relação é querermos a mesma coisa mesmo quando queremos coisas diferentes mas, no fim, querermos no limite que resulte, que fiquemos juntos, que continuemos.
O segredo de uma relação é darmos ao outro o que o outro precisa, não apenas o que queremos dar ou, aliás, o segredo é precisamente passarmos a querer dar exactamente o que o outro precisa. Não se dá ao outro o que gostaríamos que nos dessem a nós: damos ao outro exactamente o que o outro precisa e estamos predispostos a dar porque precisamos urgentemente de fazer o outro feliz. E o outro para ele somos sempre nós e queremos o mesmo. Ama-se em espelho.
O segredo de uma relação é não sermos estrangeiros nem turistas na vida do outro: é aculturararmo-nos, aprendermos uma língua comum, termos um visto, uma autorização de residência, depois nacionalizarmo-nos e podermos finalmente fazer casa no peito do outro.
O segredo de uma relação é amar o outro como ele é. Não como o romantizamos, não como queríamos que ele fosse, não como o projectamos: amá-lo exactamente como ele é.
Este ponto de encontro entre o que queremos e o outro quer, o que precisamos e o outro precisa e entre amar o que o outro é, real e cru, este ponto de encontro é a solução do teorema de Pitágoras do amor.
Há 15 anos que, às vezes, tentamos perceber o que o outro quer e precisa. Há 15 anos que, especialmente, nos amamos tal e qual como somos. Há 15 anos que tentamos muito, com vontade, energia, investimento, intuição. Consistência e coerência. Persistência e constância. E por isso resulta ou tem resultado, diz-me tu: porque sou eu e tu e o plural que se encontra neste cruzamento com coordenadas GPS que temos marcadas na pele, na alma, no bem querer.
O segredo de um casamento é não fazer puto de ideia de qual é o segredo e ir com impulso, intuição e fé.
Feliz 15 aniversário de casamento, Rui. Amar-te é simples, fácil e natural. Ser amada por ti é tudo o que quero e preciso. Ser uma pessoa melhor para tu amares orienta a bússola dos meus dias.
Norte. Sul. Este. Oeste. O meu ponto de encontro és sempre tu.

domingo, 8 de agosto de 2021

Aos 9 de Agosto de 2021, à Ana por ocasião do seu 9º aniversário

Há nove anos era sobre mim. 

 Sabia que este era o último dia em que não seria mãe, o último dia em que seríamos dois, o último dia em que a minha vida seria diferente, não sabia eu do quê, mas diferente de certeza. 
Não me enganei. Mas não sabia nada, ainda assim. Porque quem está grávida de primeira viagem nunca consegue sequer imaginar um ínfimo com o que vai contar. 

Neste dia, há nove anos, eu não sabia. Achava que deveria ser bom. Nunca conheci nenhuma mãe com saúde mental não ser extraordinariamente feliz nesse papel. Portanto, iria ser bom, de certeza. Fosse lá isso da maternidade o que viesse a ser. Mas depois foi. Ou melhor, fui. Fui mãe, fomos três, foi a vida a dar a maior cambalhota de sempre. 

E essa foi a grande mudança: deixei de conjugar o verbo ser no singular e passei a fazê-lo num plural, apertado e simbiótico, do qual nunca deixarei de fazer parte. Nunca mais serei uma. Nunca mais serei só eu. Porque todas as células do meu corpo respiram para proteger e amar aquele ser pequenino, neste dia há nove anos, ainda mais pequeno, escudado pela minha carne, sangue, ventre, útero, entranhas. 

Amanhã finalmente cá fora, exposta ao Mundo mas, ainda assim, desde então, todos os dias engolida pelo meu amor, cuidado, preocupação e afecto. Protecção. 

 Há nove anos eu achava que já era mãe. E era. Mas nisto da maternidade todos os dias contam, todos os dias somo amor, instinto e a essência duma existência maior, mais robusta, mais fibrosa que só nasceu quando te pari, Ana. 

Amanhã fazes 9 anos mas hoje celebro eu 9 anos desde a minha despedida de ser uma, desde que deixei de existir só. Ser mãe é deixar de ser singular. Que passaste a ser o meu plural.

 Há nove anos que já não é sobre mim. E ainda bem, Ana. 

quinta-feira, 1 de julho de 2021

quinta-feira, 17 de junho de 2021

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

O Mundo divide-se entre...

... quem anda a googlar cenas da monarquia britânica e os outros.


[Amantes de "The Crown" unidos!]

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

domingo, 1 de novembro de 2020

8 anos

 



Porque é que não há comida azul? Porque é que os chás e o atum vêm em latas e as salsichas e o grão em frascos? Os búzios namoram com as conchas? Porque é que os famosos querem ser famosos se depois não gostam que os reconheçam e falem com eles? Porque é que os homens baixos não usam sapatos de salto alto? Os nervais têm poderes mágicos debaixo de água? Porque é que há queijo de vaca, cabra, ovelha e não há de porco? Porque é que o Japão que é uma ilha inventou o sushi para conservar o peixe e os Açores inventaram pacotes de leite e queijo? Porque é que há quem ache que o mundo não é redondo e embirram é com as crianças que acreditam em fadas? Se me dizem que as fadas não existem porque nunca as viram porque é que acreditam em Deus se também nunca o viram? Há países onde não há quatro estações do ano: como será a quinta estação do ano? Primaveral ou outoverno? Porque é que não há uma dança típica portuguesa para um casal dançar como o tango na Argentina e o flamenco em Espanha? Se há bonsais, não deveria também haver animaisais? Porque é que põem actores sem deficiência numa cadeira de rodas a fingir que têm deficiência se isso é tão estupido como pintar um actor branco para fingir que ele é castanho? Porque há um dia da igualdade se toda a gente sabe que devíamos era ter um dia da diferença? O papa é o CEO da igreja? Porque é que não há flores com as pétalas verdes? Porque é que há países onde o cabelo das mulheres tem que ser tapado por causa dos olhos dos homens: não deviam eram tapar os olhos deles? Porque é que se nasce a chorar em vez de a rir? Não devíamos aprender língua gestual na escola? Porque é que os cozinheiros mal criados é que têm programas na televisão em vez de serem os simpáticos e gentis? As fadas, os unicórnios e o Pai Natal vivem todos no mesmo Bairro? Como é que os meninos cegos constroem puzzles e fazem legos? Se os filhos nascem da barriga das mães, as mães quando têm que morrer não deviam murchar na barriga dos filhos?

Ana: há oito anos a abanar o meu Mundo.

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

O Mundo divide-se...

... entre as pessoas que, em criança, fizeram visitas de estudo à Central de Cervejas e os outros.

terça-feira, 15 de setembro de 2020

O Mundo divide-se...

O Mundo divide-se entre os pais que forram os livros, mamam com as bolhas de ar, furam com agulhas, dizem palavrões e fica uma porcaria por demais e os outros.




 [Também há os que compram aquelas capinhas mas toda a gente sabe que isso não é parentalidade sofrida e com sacrifício, pré-requisitos essenciais nisto de se ser pai...]

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

A Primavera em nós

 As pessoas perguntam como fazemos para isto durar há uma vida. 

As pessoas não sabem que isto não é uma vida são várias como nos jogos de computador que para passares de nível tens que correr, cair, descobrir truques para passares à próxima etapa, morreres às vezes e não frustrares e desligares a porra toda, insistires e recomeçares tudo certinho para avançares. 

As pessoas não sabem que isto não é uma vida são três: a minha, a tua e a nossa e as três desdobram-se em todas as vidas que já vivemos e as que estão por viver, tudo o que e quem já fomos, o que somos e o que mudamos, quem seremos e a incógnita do que está por vir. 

As pessoas não sabem que o desafio é acompanhar o ritmo da mudança um do outro e de nós e das circunstâncias (e de não as conseguirmos controlar tantas vezes) e no fim crescermos para o mesmo lado e não nos desencontrarmos nos patamares, na direção em que andamos e às vezes eu abrando e tu apressas-te, outras tu paras para eu te conseguir apanhar, às vezes tomamos balanço e avançamos muito e é incrível e se estamos os dois exaustos ou quase a perder-nos sentamo-nos a conversar à sombra da árvore do bem querer, caem folhas de cansaços e chove mas nunca deixámos de ter esperança que a Primavera é cíclica e volta sempre e que devemos esperar pelas flores. 

As pessoas perguntam-nos como fazemos para isto durar há uma vida e não sabemos explicar que nunca pensámos ou decidimos que ia durar todas estas vidas, limitámo-nos a viver, a errar, a falhar e a desejar e querer insistentemente acertar e a descobrir que é na companhia um do outro que as cegonhas fazem ninho no Mundo, as andorinhas regressam sempre e o amor é um pedaço perfeito de sol. 

As vidas mudam, nós mudamos mas, ano após ano, a Primavera nunca deixa de regressar

A mámen, por ocasião do nosso 14º aniversário de casamento, esperando continuar a nunca ter que lhe pedir




"No te voy a pedir que me des un beso. Ni que me pidas perdón cuando creo que lo has hecho mal o que te has equivocado. Tampoco voy a pedirte que me abraces cuando más lo necesito, o que me invites a cenar el día de nuestro aniversario. 

 No te voy a pedir que nos vayamos a recorrer el mundo, a vivir nuevas experiencias, y mucho menos te voy a pedir que me des la mano cuando estemos en mitad de esa ciudad.

 No te voy a pedir que me digas lo guapa que voy, aunque sea mentira, ni que me escribas nada bonito. Tampoco te voy a pedir que me llames para contarme qué tal fue en el día, ni que me digas que me echas de menos. 

 No te voy a pedir que me des las gracias por todo lo que hago por ti, ni que te preocupes por mi cuando mis ánimos están por los suelos, y por supuesto, no te pediré que me apoyes en mis decisiones. Tampoco te voy a pedir que me escuches cuando tengo mil historias que contarte. 

No te voy a pedir que hagas nada, ni siquiera que te quedes a mi lado para siempre. 

 Porque si tengo que pedírtelo, ya no lo quiero. "

Frida Khalo

 Frida Kahlo

terça-feira, 25 de agosto de 2020

domingo, 9 de agosto de 2020

Aos 9 de Agosto de 2020, à Ana por ocasião do seu 8º aniversário

Sabes, Ana, este era um aniversário que eu ansiava. Oito anos é uma idade importante para mim e não é pelos melhores motivos. Mas sabes que te conto sempre a verdade do Mundo, mesmo que a verdade doa. Tinha 8 anos quando eles se separaram. Sei que não me ouves falar do meu pai mas eu gostava muito dele antes de desgostar isto tudo que desgosto. É estranho desgostarmos de um pai, não é? Percebo-te bem na medida em que tens o melhor e mais dedicado pai do Mundo. Dizia-te eu que tenho gravados os meus 8 anos como o ano em que os meus pais se separaram mas, na verdade, o que conta é que esse foi o ano em que me senti desamada pela primeira vez. Talvez por isso ansiava que chegassem os teus 8 anos, felizes e tranquilos, seguros e, especialmente, amados, cuidados e queridos incondicionalmente, por todos. Como se pudesse, através de ti, dar colo à menina de 8 anos que fui, dar-lhe beijinhos nas esfoladelas da alma, apagar o desamor sentido à estreia. A psicologia explica e um dia posso-te explicar tudo, vantagem de quem tem pais psicólogos, né? Crescer dói sempre, filha. Porque implica escolher e aceitar escolhas circunstanciais que a vida nos atira sem que peçamos. E todas as escolhas implicam um ganho do que se escolheu mas também uma perda do que se deixou por escolher. Aceitar e viver bem com isto é o maior desafio da nossa existência. Assim que perceberes que é assim que funciona tudo será mais fácil. Não te posso spoilar a vida, Ana, porque isto é absolutamente imprevisível e dinâmico. Essa também é a parte que tem graça. Desejo que cresças forte e segura. Não segura de ideias, que elas evoluem. Nem de dogmas ou convicções. Nem sequer de quem tu és porque vamos sendo diferentes pessoas ao longo da vida. Mas segura incondicionalmente de que és amada por nós e que nunca sairemos de perto de ti. Nunca será o último aniversário que, por nossa escolha, passaremos contigo. Como foi o meu oitavo, o último em que desconheci o desamor. Não aches que isto não é um final feliz porque sou tua mãe e tu consertaste, célula a célula da minha vida, a forma como vivo o amor. Como amo e sou amada. Eu ensino-te a verdade do Mundo mas tu retribuis-me com toda a verdade sobre o amor.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

"Uma pessoa compreende o Mundo, pouco a pouco, e depois morre"




“Uma pessoa compreende o Mundo, pouco a pouco, e depois morre” - in “as velas ardem até ao fim”. 
 Nos últimos meses aprendi tanto, cresci tanto, aprendi tanto sobre mim e sobre o Mundo, abriram-se tantas luzes, desfizeram-se tantos nós. Tem sido um processo tranquilo e sereno ao contrário de todas as outras vezes em que cresci à força, puxada por episódios marcantes específicos: a separação dos meus pais, a morte dos meus avós, o nascimento de Ana, a morte do meu tio. 

 Desta vez é diferente, é de dentro que o crescimento vem, não é nada externo, consigo projectar-me,pensar mais fundo como quem inspira, sentir melhor. 

 Faço quarenta anos dentro de dois meses, o equador da vida e já não me sinto a envelhecer, como se fosse uma coisa pesada e fatídica, sinto-me só finalmente a crescer sem ser à bruta, à força, com estaladas da vida e abanões do destino. Crescer como cresce uma planta já depois de ter caule e folhas e flores, crescer para os lados, tornar-me mais robusta e forte, melhor. Uma pessoa compreende o Mundo, pouco a pouco. Pouco a pouco, é mesmo assim. Para compreender tudo bem. Tudo certo e melhor.

 E depois poder, enfim, morrer como quem (se) apaga (n)uma estrela.
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