Ele.
Ele.
Há dez anos deixaste de ser uma imagem difusa, abstracta, a preto e branco e estática nos monitores das ecografias.
Às vezes fico a pensar em quem eu era antes de me tornar tua mãe e era uma pessoa diferente, Ana, muito diferente e também por isso, para além de um novo papel social, muito para além disso, trouxeste uma nova pessoa que cabe de forma muito mais confortável em mim, como se a tua vinda tivesse obrigado a ajustar-me e a caber melhor na minha cabeça e corpo e, de repente, contigo ao colo tivesse finalmente chegado à casa de mim.
Há dez anos conheci-te e nunca te estranhei porque te havia sonhado, toda a vida, exactamente assim como és, tão perfeita e tão gentil, tão serena e tão curiosa, com alma de crescida e sorriso de criança, com coração com a idade de todos os nossos antepassados.
Trouxeste-me tudo e a mim mesma, trouxeste-me as pazes com o passado e a esperança no futuro, trouxeste-me expressões de cada um de nós, trouxeste-me um mundo novo inversamente proporcional ao que conhecia de ti até então e tudo se tornou espantosamente claro e concreto e cheio de cores e movimento, cheio de graça, cheio de ti.
Trouxeste-me a infinitude do amor.
Dizem que te dei à luz, que te dei vida mas hoje, dez anos depois, conto-te um segredo: foste e és tu que, todos os dias me dás vida, luz e sentido a mim, filha farol, filha minha.
Feliz ano novo, Ana. Ainda não foram inventadas palavras para explicitar o quanto te amo por amor sem fim, sim, só a ti.
Estávamos com preguiça de sair de casa. E depois eu disse: "É bom ter a liberdade de sentirmos preguiça, de podermos escolher e tomar opções, de podermos decidir não ir aos sítios onde devemos ir sem termos consequências, é bom vestires calções e andares na escola e eu ter trabalho fora de casa e educação, sendo mulheres e é bom o pai não ser obrigado a ir lutar para uma guerra a defender países que nunca deviam ter sido reclamados por nós e não sabermos se ele volta com vida".
A maravilha do regresso à normalidade dos dias cá dentro. Lá fora continua tudo uma merda: guerra, violação dos direitos humanos, incerteza e a angustia de estarmos à mercê de um ditador russo psicótico.
Mas cá dentro- por mais egocêntrico que pareça- é sempre pior. Porque antes de morarmos no Mundo moramos em nós.
Há dias extraordinariamente ambivalentes.
De repente, há uma janela que se abre, se escancara para ti e tu ficas ali, sem saber se trepas, se a fechas e ficas ali, indecisa entre o calor de uma casa que conheces- onde te sentes em família, onde podes andar de pés descalços e sabes que há sempre comida quente sobre a mesa, abraços à tua espera - e o fresco das aventuras que te espera no outro lado do vidro, nas ruas desconhecidas cheias de desafios por desbravar. Sentas-te no parapeito da janela e olhas ora para dentro, ora para fora, o conforto de dentro, a casa e a família e todas as possibilidades em aberto de fora, tudo o que pode acontecer, a novidade, a mudança e tu até não és nada avessa à mudança. Fechas as portinholas e voltas para o calor? Ou pões uma mão de fora para testar a temperatura e, num salto de fé (é sempre de fé que se trata) saltas para o desconhecido (e se for um abismo? E se correr mal? E se ficares perdida ao frio? E se nunca encontrares o caminho para voltar? E se nunca mais houver volta?)?... entre quem prefere farófias com doce de ovos e quem prefere farófias com leite creme.
A minha mãe fez anos e eu não lhe escrevi nada.
Fiquei a consumir-me desde então porque não lhe tinha escrito nada. Não gosto de estar em falta com a minha mãe.Descias as escadas a caminho da ala autónoma e eu vi-te pela primeira vez. Os nossos olhares cruzaram-se num segundo e eu senti qualquer coisa cá dentro que podia ser amor à primeira vista, acreditasse eu na altura ou mesmo hoje no amor à primeira vista. Horas depois éramos amigos, como se nos conhecessos desde sempre, como se eu na altura soubesse onde ficava São Jorge no mapa e eu nem sabia ao certo tão pouco o nome das nove ilhas dos Açores.
Depois mudei-me para a tua turma, os professores ficavam confusos, nunca pedi transferência mas às tantas as minhas notas saiam nas vossas pautas e tudo fluía, sentávamo-nos lado a lado no auditório, tu davas-me, pacientemente, explicações de história nos jardins de Belém e eu retribuía, trocista, tudo o que sabia sobre neurónios e sinapses e a estrutura do cérebro naquela cadeira do professor esquisito.
Depois foi num instante Natal e fomos ao Martim Moniz comprar prendas, não tínhamos dinheiro para nada, comiamos sempre na macrobiótica da cantina, pediste-me dinheiro emprestado e eu achei que não voltarias das férias da ilha que eu não sabia localizar no mapa, nem me devolverias os cinco contos e era início do segundo semestre e eu tinha saudades tuas, queria lá saber do dinheiro para alguma coisa. E voltaste, devolveste o dinheiro e trouxeste-me um presente, só para mim, para mais nenhuma amiga e uns dias depois cravaste-me um beijo e eu não me fiz de esquisita, mortinha que estava para deixar de fazer cerimónias.
E depois já desciamos a avenida de mãos dadas, e passávamos férias juntos, e um dia os teus pais vieram cá e conheci-os, também já ias a minha casa há algum tempo, todos sempre gostaram de ti, é mesmo fácil gostar de ti.
E estudavas e trabalhavas no café, eu dava explicações, íamos de carreira que apanhavamos no arco do cego passar fins de semana em pensões com percevejos em terras mais longe e depois o curso acabou, tu ficaste, começámos a trabalhar, eu, tu, daí a alugar a casa na praceta foi um passo, casar pela igreja dois, ter a Ana num piscar de olhos, mudarmos de casa uma e depois outra vez, mobília às costas, literalmente, sempre fácil, mesmo quando era dificil.
E houve crises que não nos lembramos por preguiça ou por escolha, não gostamos de coisas complicadas, e há sempre histórias a serem escritas, aguarelas a serem pintadas, vida a ser vivida e momentos importantes a ser construídos.
Foste e és a melhor escolha da minha vida, a única que fica sempre, a decisão mais acertada, a companhia mais certeira, a pessoa mais fácil de gostar, o pai mais fantástico que já conheci e um marido, acima de tudo, incrivelmente bondoso, generoso, paciente e um homem bom. Depois há o amor, mas do amor não há muito que se lhe diga, não tem mérito, não dá trabalho, é fácil gostar de ti, se acreditasse em amor à primeira vista seria isso, assim eu só amor em todas as vistas, em todos os ciclos, em todas as células que amo em ti.
É fácil amar-te porque não há outra alternativa face ao homem incrível que foste crescendo comigo. Para a Ana. Para mim.
Parabéns, Rui.
No soy Georgina, mas o melhor do Mundo sequei-o eu.
Em 2021 senti-me profundamente triste. E aflita. E impotente E devastada. Tive terror em perder a minha tia e perdi o meu tio num momento de terror. Confortei a minha prima. Alimentei o meu outro tio. Percebi definitivamente que nunca mais retomarei relações com a minha outra prima Tomei conta de muita gente e pouca de mim. Fui promovida na pior altura para o ser. Trabalhei horrores. Tive muitas mudanças no trabalho até que apareceu a Ana Lúcia para me serenar. Serenou. Ajudei a organizar uma manifestação pela vida independente. Gritei num megafone. Fiz uma vigília e dormi à porta da Assembleia da República. Reforcei a certeza de que o meu casamento é para sempre e que há amores para a vida toda (até podem não haver casamentos, mas amor há!). Perdi a Joana. Dei centenas de horas de formação. Vi a Monalisa. Tive o melhor jantar do ano aos pés da Torre Eiffel. Vi, finalmente, toda a Casa de Papel. Tive pouco com amigos. Voltei a organizar campos de férias. Diverti-me tanto na Isla Mágica. Fui vacinada. Falhei nos exames de rotina da mama mas compenso em breve. Passei o dia da mãe com a minha mãe sem máscara e viseira. E com a Ana. As três na Lx Factory. Vi um espectáculo de flamenco ao vivo. E comemos tantas tapas, os três felizes em Sevilha. Comovi-me na Eurodisney. Namorei muito no Verão com tinto de Verano e Manchego. No meu aniversário um conjunto de bandalhos bons juntou-se no mato para me cantar os parabens. Foi tão importante para mim. Comi marisco em São Martinho do Porto. Fui feliz em Elvas com a Inês e o Bruno. Recebi os meus sogros em tranquilidade. Li pouco. Fui a Itália em trabalho e conheci gente incrível A Ana fez a sua primeira comunhão. A minha mãe esteve sempre por perto e isso é tudo para mim. Fui feliz com a Eillen a cantar a banda sonora da Tieta. Fiz yoga no Moinho de Maneio. A Ana cresceu, cada vez mais pessoa inteira e boa. Aprendi a jogar Rummy. Permiti-me a falhar e abracei a vulnerabilidade com auto-compaixão. Em 2021 fui uma andorinha sempre em vôo numa constante tentativa de regresso a casa.
A gente anota o primeiro dia em que se sentam, em que lhes nasce o primeiro dente e depois em que lhes cai também, em que dão os primeiros passos, do primeiro dia de creche e depois, todos os anos, de escola. A gente anota a primeira palavra dita e a primeira escrita, o primeiro desenho de figura humana e o inaugurar de tantos estadios.
... entre as pessoas que, mal espreita o Outono, ainda andam de chinelos e as que passam logo a andar de calçado fechado/botas
Gostava de morrer velha. Velha, velhinha. Ainda melhor, gostava de morrer velha e de velhice. Como se a vida quisesse pedir a conta final e fechar a despesa, satisfeita e de papo cheio, pronta a levantar o rabo da mesa e sair de mansinho, olhos fechados, memórias arrumadas, papo cheio, sensação de fecho da loja.
...... entre as pessoas que acordam com o humor certo e não querem conversa de manhã e as outras.
... quem anda a googlar cenas da monarquia britânica e os outros.
[Amantes de "The Crown" unidos!]
Porque é que não há comida azul? Porque é que os chás e o atum vêm em latas e as salsichas e o grão em frascos? Os búzios namoram com as conchas? Porque é que os famosos querem ser famosos se depois não gostam que os reconheçam e falem com eles? Porque é que os homens baixos não usam sapatos de salto alto? Os nervais têm poderes mágicos debaixo de água? Porque é que há queijo de vaca, cabra, ovelha e não há de porco? Porque é que o Japão que é uma ilha inventou o sushi para conservar o peixe e os Açores inventaram pacotes de leite e queijo? Porque é que há quem ache que o mundo não é redondo e embirram é com as crianças que acreditam em fadas? Se me dizem que as fadas não existem porque nunca as viram porque é que acreditam em Deus se também nunca o viram? Há países onde não há quatro estações do ano: como será a quinta estação do ano? Primaveral ou outoverno? Porque é que não há uma dança típica portuguesa para um casal dançar como o tango na Argentina e o flamenco em Espanha? Se há bonsais, não deveria também haver animaisais? Porque é que põem actores sem deficiência numa cadeira de rodas a fingir que têm deficiência se isso é tão estupido como pintar um actor branco para fingir que ele é castanho? Porque há um dia da igualdade se toda a gente sabe que devíamos era ter um dia da diferença? O papa é o CEO da igreja? Porque é que não há flores com as pétalas verdes? Porque é que há países onde o cabelo das mulheres tem que ser tapado por causa dos olhos dos homens: não deviam eram tapar os olhos deles? Porque é que se nasce a chorar em vez de a rir? Não devíamos aprender língua gestual na escola? Porque é que os cozinheiros mal criados é que têm programas na televisão em vez de serem os simpáticos e gentis? As fadas, os unicórnios e o Pai Natal vivem todos no mesmo Bairro? Como é que os meninos cegos constroem puzzles e fazem legos? Se os filhos nascem da barriga das mães, as mães quando têm que morrer não deviam murchar na barriga dos filhos?
Ana: há oito anos a abanar o meu Mundo.
... entre as pessoas que, em criança, fizeram visitas de estudo à Central de Cervejas e os outros.
As pessoas perguntam como fazemos para isto durar há uma vida.
As pessoas não sabem que isto não é uma vida são várias como nos jogos de computador que para passares de nível tens que correr, cair, descobrir truques para passares à próxima etapa, morreres às vezes e não frustrares e desligares a porra toda, insistires e recomeçares tudo certinho para avançares.
As pessoas não sabem que isto não é uma vida são três: a minha, a tua e a nossa e as três desdobram-se em todas as vidas que já vivemos e as que estão por viver, tudo o que e quem já fomos, o que somos e o que mudamos, quem seremos e a incógnita do que está por vir.
As pessoas não sabem que o desafio é acompanhar o ritmo da mudança um do outro e de nós e das circunstâncias (e de não as conseguirmos controlar tantas vezes) e no fim crescermos para o mesmo lado e não nos desencontrarmos nos patamares, na direção em que andamos e às vezes eu abrando e tu apressas-te, outras tu paras para eu te conseguir apanhar, às vezes tomamos balanço e avançamos muito e é incrível e se estamos os dois exaustos ou quase a perder-nos sentamo-nos a conversar à sombra da árvore do bem querer, caem folhas de cansaços e chove mas nunca deixámos de ter esperança que a Primavera é cíclica e volta sempre e que devemos esperar pelas flores.
As pessoas perguntam-nos como fazemos para isto durar há uma vida e não sabemos explicar que nunca pensámos ou decidimos que ia durar todas estas vidas, limitámo-nos a viver, a errar, a falhar e a desejar e querer insistentemente acertar e a descobrir que é na companhia um do outro que as cegonhas fazem ninho no Mundo, as andorinhas regressam sempre e o amor é um pedaço perfeito de sol.
As vidas mudam, nós mudamos mas, ano após ano, a Primavera nunca deixa de regressar
Sabes, Ana, este era um aniversário que eu ansiava. Oito anos é uma idade importante para mim e não é pelos melhores motivos. Mas sabes que te conto sempre a verdade do Mundo, mesmo que a verdade doa. Tinha 8 anos quando eles se separaram. Sei que não me ouves falar do meu pai mas eu gostava muito dele antes de desgostar isto tudo que desgosto. É estranho desgostarmos de um pai, não é? Percebo-te bem na medida em que tens o melhor e mais dedicado pai do Mundo. Dizia-te eu que tenho gravados os meus 8 anos como o ano em que os meus pais se separaram mas, na verdade, o que conta é que esse foi o ano em que me senti desamada pela primeira vez. Talvez por isso ansiava que chegassem os teus 8 anos, felizes e tranquilos, seguros e, especialmente, amados, cuidados e queridos incondicionalmente, por todos. Como se pudesse, através de ti, dar colo à menina de 8 anos que fui, dar-lhe beijinhos nas esfoladelas da alma, apagar o desamor sentido à estreia. A psicologia explica e um dia posso-te explicar tudo, vantagem de quem tem pais psicólogos, né? Crescer dói sempre, filha. Porque implica escolher e aceitar escolhas circunstanciais que a vida nos atira sem que peçamos. E todas as escolhas implicam um ganho do que se escolheu mas também uma perda do que se deixou por escolher. Aceitar e viver bem com isto é o maior desafio da nossa existência. Assim que perceberes que é assim que funciona tudo será mais fácil. Não te posso spoilar a vida, Ana, porque isto é absolutamente imprevisível e dinâmico. Essa também é a parte que tem graça. Desejo que cresças forte e segura. Não segura de ideias, que elas evoluem. Nem de dogmas ou convicções. Nem sequer de quem tu és porque vamos sendo diferentes pessoas ao longo da vida. Mas segura incondicionalmente de que és amada por nós e que nunca sairemos de perto de ti. Nunca será o último aniversário que, por nossa escolha, passaremos contigo. Como foi o meu oitavo, o último em que desconheci o desamor. Não aches que isto não é um final feliz porque sou tua mãe e tu consertaste, célula a célula da minha vida, a forma como vivo o amor. Como amo e sou amada. Eu ensino-te a verdade do Mundo mas tu retribuis-me com toda a verdade sobre o amor.