Há dias assinalaram-se os trinta anos da Convenção para os Direitos da Criança. Foi a minha amiga Marta Botelho, a melhor educadora do Mundo ali do colégio Piloto Diese, que me lembrou num post de facebook, enquanto reflectiamos sobre o quão longe ainda estamos de fazermos valer no Mundo, mas também tanto em Portugal, os direitos plenos das crianças.
Ontem, 25 de Novembro, assinalou-se o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres e eu queria muito escrever sobre este tema, como do das crianças e veio-me à memória uma leitora do blog que materializa tudo o que eu queria dizer sobre isto.
A Esloane- é esse o nome da leitora deste blog que chegou aqui não consigo imaginar como- foi mãe adolescente como, aliás, a sua mãe a sua avó, numa cultura onde é comum ser-se mãe antes da idade adulta.
Esloane tem, antes dos trinta, três filhos e é, provavelmente, a mulher mais resolvida que conheço. Vive no Brasil, de onde é natural, numa cidade de interior daquelas que parecem cidade cenário do Roque Santeiro ou uma espécie de Patópolis dos livros do Tio Patinhas. Filha de uma família pobre, cresceu sem o que- na Europa- consideramos condições de habitabilidade básicas, filha de pais trabalhadores rurais e esforçados, é agora que, trabalhadora e mãe de três filhos, conseguiu ser, finalmente, a primeira estudante universitária da sua família.
Esloane, menos que trinta anos, filha de uma família pobre, mãe de três, estudante universitária.
Contava há dias, a Esloane, e atrevo-me a citá-la porque nada do que eu poderia escrever a contar a história dela, seria mais forte e impactante do que as suas próprias palavras:
"Um dos grandes problemas de quem sofre violências doméstica pesada são
os traumas
(aparentemente) eternos. Daí q num dia você ta ótima, tem um
dia lindo, vê possibilidades infinitas para o futuro, feliz, focada,
safada pensando em amor, sexo, felicidade e putaria (não que tudo isso
esteja associado ou siga essa ordem) . No outro você só consegue lembrar
do desespero provocado pela ponta de uma faca encostada na barriga, da
falta de ar da esganadura, do pavor de ficar trancada sem saber por
quanto tempo.
E no outro dia você ri das vezes q tirou o ferrinho do
meio das dobradiças da porta para arrancá-la inteira ou arrebentou o
miolo ( o lugar q mete a chave) como se isso fosse o maior ato de
rebeldia do universo...
Pelo lado positivo, pelo ao menos a gente aprende a abrir portas sejam elas de casas ou da vida"
E eu- maricas e impulsiva que só eu- já me apetecia apanhar um voo e ir para nowhereópolis abraçar a Esloane, menos que trinta anos, filha de uma família pobre, mãe de três, estudante universitária e vítima de violência doméstica.
Mas depois um post dela me travou: o filho mais novo de Esloane, com 4 anos e 8 meses, doido por dinossauros rex e legos, ainda não adquiriu linguagem verbal, não aprecia a interacção com outras crianças, sente-se incomodado perante o toque o estímulos tácteis e, depois de avaliado por terapeutas da fala, foi diagnosticado como tendo apraxia da fala e suspeita de síndrome de Asperger. Foi-lhe recomendado que consultasse um neurologista pediátrico para poder analisar com mais minúcia o caso do miúdo, o único profissional no Brasil considerado qualificado para passar um relatório que permitirá à Esloane activar os pedidos de respostas sociais necessários. Foi, ainda, recomendado que o menino começasse, de imediato, a frequentar sessões de terapia da fala com uma periodicidade semanal.
Esloane, furacão que só ela, menos que trinta anos, filha de uma família pobre, mãe de três, estudante universitária e vítima de violência doméstica, mãe de uma criança com diversidade funcional, ficou puta da vida. Não só não tem o dinheiro disponível para encetar este périplo como sabe que a espera por uma vaga de resposta pelo sistema nacional de saúde brasileiro pode demorar tanto tempo a chegar que poderá comprometer o desenvolvimento da criança para o resto da vida, porque a intervenção precoce não pode esperar.
Uma consulta num neurologista pediátrico custa, no estado da Esloane, 400 reais acrescidos de custas com exames. São mais ou menos 86 euros. As sessões de terapia da fala têm um custo de 160 reais cada. Cerca de 35 euros por semana.
Esloane não tem condições para pagar sequer a consulta inicial. Então, com a força de quem arromba portas, começou por fazer rifas e encontra-se neste momento, a acordar de madrugada e a ir para uma estação de autocarro vender "café fresquinho" aos passageiros que esperam pelo transporte público, ainda antes dela própria ir para o seu trabalho. Eu imagino este "café fresquinho" com aquela pronúncia brasileira doce e trocista que imagino na voz da Esloane, que nunca ouvi nada vida, mas que reconheço na minha cabeça como se reconhecem as vozes dos amigos.
Esloane, menos que trinta anos, filha de uma família
pobre, mãe de três, trabalhadora, estudante universitária e vítima de violência
doméstica, mãe de uma criança com diversidade funcional, batalhadora e inteligente, proactiva e lutadora.
É para ela que este ano quero direccionar todas as minhas prendas de Natal.
Para a ajudar a abrir portas.
De casa . Da vida.
Da sororidade que une as mulheres.
Do amor que só sentem as mães.