A minha mãe adora fotografias. Tenho centenas (milhares?) delas que testemunham toda a minha infância: fotografias de festas de aniversário, de dias de Carnaval, de férias de Verão, de brincadeiras no quintal com a minha prima, das colónias de férias, da primeira comunhão, do lançamento dos livros, de Natais. Tenho também fotografias de internamentos no hospital (passava por lá temporadas de meses) a brincar com barbies em tabuleiros sentada na cama articulada, a apanhar sol à porta do Alcoitão deitada de barriga para baixo na maca à espera que me cicatrizassem os calcanhares e a passear de cadeira de rodas com os dois pés engessados no regresso a casa. Esta última empunhando um raminho de flores amarelas, as chamadas azedas. Em todas elas estou feliz. A sorrir e feliz, independentemente das circunstâncias.
Nunca se lembrou a minha mãe de me retratar a berrar ( e eu também fazia birras), triste, com dores de corpo ou de alma, zangada ou frustrada, em "melt downs" ou em situação de descontrolo de emoções. E acredito que tal decisão não se deveu, propriamente, ao preço dos rolos porque também não consta nos meus álbuns a fotografia típica dos anos 80 onde jaz o bebé gordo e nu numa banheira de plástico, a fotografia mais temida por todos os meus amigos quando as respectivas mães faziam questão de exibir os seus álbuns de fotos. A minha mãe sempre me retratou feliz, mesmo que a ocasião não o fosse.
Agradeço-lhe hoje por isso.
A minha mãe também me fazia outras mil coisas para me proteger: tapava-me à noite antes de eu dormir, caminhava sempre comigo de mão dada do lado de dentro do passeio, garantia que eu ia limpa, penteada e bem vestida para a escola, tentava que eu não me expusesse gratuitamente e, já crescida, quando eu comecei a tentar negociar utilizava o argumento final, quando todas as argumentações já tinham falhado: "eu sou a tua mãe e eu sei o que é melhor para ti, portanto, é assim e acabou. Um dia vais-me agradecer!"
Lembro-me de ser criança. Nunca me esqueço. Consigo fechar os olhos e quase sentir na língua o sabor do gelado pézinho, cor-de-rosa e cremoso. Sinto o coração a bater sempre que me recordo dos momentos que antecediam a visita do pai Natal a minha casa. Lembro-me do abraço que me deu quando chegou a correr ao hospital e me viu, sozinha, na sala de espera, depois de ser transportada de ambulância após um desmaio na escola. Lembro-me de todos usarem tanga para ir para a praia, que era mais prático, que dava mais jeito e dela perceber que eu não queria e nunca, mas nunca, discutir comigo o uso de fato de banho, mesmo que eu tivesse três anos. Lembro-me das pessoas lhe perguntarem porque não me obrigava a usar saias, que estupidez estar a alimentar as minhas manias e complexos e dela sempre defender a minha voz sobre o meu corpo. Lembro-me de tudo, especialmente das emoções. E lembro-me que ela me protegia sempre e de- ainda hoje- sempre que estou em aflição ser por ela que chamo.
Nos anos 80 nós não levantávamos muito a garimpa aos nossos pais. Eles eram crianças no tempo da ditadura e a disciplina vinha contextualizada, de raíz, de uma forma diferente mas com uma lufada de ar fresco trazida pelas novas correntes de pensamento e pela democracia. Eles eram pais diferentes dos pais dele, esforçavam-se para isso, tentavam mudar o que não tinham, como filhos, compreendido, aceite, incorporado. Nos pais da minha geração havia gritos, havia "deixa o teu pai chegar do trabalho que logo conversamos" e muitas ameaças do "em casa conversamos" e havia chineladas, palmadas e estalos e estaladas (oh yeah, são coisas diferentes). Já não havia vergastadas com cintos nem as "tareias de meia noite" que nos contavam que tinha sido sopa no tempo em que eles próprios eram crianças. Eles estavam a tentar dar o seu melhor, a imprimir nos seus eus de pais as mudanças que urgiam os seus eus de filhos. Agarrados a dogmas do passado, demasiado normalizados e perpetuados como a "palmada" e a confusão entre medo/respeito e poder/autoridade eles, contudo, já não queriam usar o cinto, já recusavam métodos pedagógicos.
Dizia eu que, nos anos 80, nós não levantávamos muito a garimpa aos nossos pais mas não deixávamos de fazer birras, de gritar, de tentar negociar, de espernear, bater com portas na adolescência, revirar os olhos, de chorar e de manifestar todas as emoções.
Não éramos, por isso- lamento desiludir-vos- mais bem educados, menos birrentos, mais "maduros" e fáceis de educar: éramos crianças com emoções e que manifestávamos essas emoções com os recursos emocionais que tínhamos ao nosso dispor. Eu também.
A minha mãe era disciplinadora, não pensem. Rigorosa e rígida, pouco complacente e sem grande margem para mimimis. Gritou-me muito, perdeu amiúde a paciência e bateu-me algumas vezes. Dirá ela, ainda hoje que "foram todas merecidas e que não me fizeram mal nenhum" que até sou uma miúda decente. Mudou muita coisa em relação aos pais dela, não me obrigava a trata-la por "você", teve comigo as conversas todas sem tabus "como se fazem os bebés", a menstruação, a prevenção da gravidez adolescente, levava-me à discoteca, abriu-me o jogo de que se eu quisesse fumar poderia fazê-lo mas teria que lhe pedir dinheiro a ela e nunca aceitar cigarros de estranhos, nunca me deu nenhuma "tareia", era afectuosa e não se coibia de o mostrar. Fez diferente, fez melhor com os recursos que tinha de vantagem face aos que tinham os meus avós.
Estou certa que terá tido, ao longo dos 25 anos em que coabitámos, inúmeros momentos de insegurança e ansiedade (ainda mais somos uma família monoparental). Nunca agarrou na máquina fotográfica ou, mais tarde, na velha câmara de filmar, para registar os meus momentos de descontrolo. Mesmo sob o pretexto de os querer usar para mostrar à minha médica, para lhe pedir aconselhamento, partilha de estratégias ou apoio na gestão de momentos de crise. Não havia internet mas lia livros da área (avé Clube dos Leitores!), partilhava com as amigas as suas ansiedades e com a minha médica sempre par a par, recorreu à psicóloga da Junta de Freguesia quando achou que era altura de uma intervenção mais séria e protegeu-me. Sempre.
A maioria das vezes, agora que sou crescida, empatizo com a minha mãe. Reproduzo muitas das suas estratégias, oiço as suas sugestões. Mas também faço muitas coisas diferentes, não sei se melhores, mas diferentes. Não percebo as pessoas do "no meu tempo levava nos cornos e não me fez mal nenhum". No meu tempo a minha mãe lavava roupa e loiça à mão e as fraldas eram de pano, senhores! Vamos começar a dar aos nós dos dedos que não nos faz mal nenhum, boa?
Os tempos e os contextos são diferentes, as circunstâncias são diferentes e os recursos que tenho ao meu dispor são diferentes. A minha mãe fez o melhor que sabia com os recursos que tinha. Eu faço o melhor que sei com os recursos que tenho. A minha mãe aboliu o "você", o "cinto" e o "medo pela autoridade". Por exemplo, eu, e contrariamente ao que sempre acreditei antes de ser mãe, nunca bati à Ana. Nem conto, alguma vez na vida, fazê-lo.
Dizia eu, a maioria de nós, depois de parir, empatiza com as próprias mães. É uma tendência que nós todas temos e acho que até há uma frase feita daquelas populares que diz isso mesmo, que uma pessoa cresce e dá valor à mãe. Eu dou. A maternidade aproximou-me em muitas coisas da minha mãe mas, curiosamente, a minha infância foi tão estruturante e significativa que tem um peso muito mais importante de aproximação à infância da minha filha.