Diz que a Jessica Athaíde está gorda, ouço eu no café, enquanto trinco um pastel de nata. As duas raparigas, na casa dos vinte anos, fofocam sobre a polémica, na mesa ao lado. Dizem que sim, senhora, que não percebem o sururu, que há ali chichinha na barriga, que não tinham coragem de se "pôr de biquini numa passerele com aquela forma física"- diz a entendida na matéria- olho-a de ladex, uma miúda normal, nem gorda nem magra, com toda a certeza com uma barriga não mais tonificada que a da Jessica, não consigo ver bem, olho para baixo, a minha barriga tão mais mole do pós-parto, da vida de trabalho na secretária, dos pastéis de nata. Olham para o tablet, reparo que estão a ver um comentário que vi ontem do Rui Unas, criticando as raparigas que são só pele e osso, "meninas-cabide" como lhes chama um amigo meu, defensor da chicha.
Parece-me igual, tudo o mesmo, criticar a chichinha da Jessica ou os ossos das modelos anónimas, como se o corpo definisse a pessoa, a sua segurança, o seu modo de vida, a sua forma de ser e estar, a sua sensação de felicidade. Vêm-me à memória as pessoas estupidamente queridas que já conheci: a minha amiga Rosa com chichinha, das pessoas mais fabulosas que a vida me deu, a minha amiga Cláudia que nunca conseguiu dar sangue por não passar a barreira dos 50 quilos, tanto me faz as suas carcaças, o revestimento dos seus ossos, são maravilhosas ambas, para quê hierarquizar beleza, formatar padrões, julgar células, massa óssea, gordura. Acreditar que a vida depende de um número ditado por uma balança, seja um número pequeno ou grande, tanto me faz, faz-me revirar os olhos.
Suspiro. Olho para elas com ar meio esquizóide, vejo que me acham meia maluquinha (e sou), não quero saber, e sai-me uma deixa à Maria do Frei Luis de Sousa: "O corpo é uma flor muito fresca. E mortal.". Foi ele que me disse, um dos homens que mais amei, num dia em que também na casa dos vinte, reclamava da minha forma física. Era mais magra do que hoje e tive dias mais felizes e menos felizes do que os que tenho hoje, a minha felicidade não depende do meu peso, isso é limpinho. As medidas dos corpos nada têm que ver com as medidas da felicidade.
Diz que a Jessica Atahíde está gorda e eu sorrio. Lembro-me que, assim sendo, de acordo com os padrões que esta sociedade impõe- esta sociedade cheia de meninas da mesa do lado- constato que, desta forma, sofro de obesidade mórbida.
E acabo de comer, prazenteiramente, o meu pastel de nata.